«O escutismo incentiva-nos a viver na natureza e eu cresci com a vontade de explorar novos sítios»

O André Patrício Peixoto é enfermeiro de formação e assume que tem dificuldade em dizer que já não é escuteiro. Vive uma grande aventura com a Joana, também portuguesa e que conheceu em Moçambique. Juntos criaram o projeto “De Chapa em Chapa”, onde mostram através do Instagram e do Youtube, a sua viagem de regresso a Portugal desde Moçambique, numa autocaravana. Este “ainda escuteiro” falou com a Flor de Lis quando estava no Quénia, dentro da sua chapa, entre quilómetros de uma experiência inesquecível.

Flor de Lis – André, conta-nos um pouco sobre ti. Foste escuteiro, já não és?

André Peixoto – Eu tenho dificuldade em dizer que sou escuteiro agora, mas também tenho dificuldade em dizer que não sou escuteiro. É um misto de emoções! Quando estava em Moçambique, nos sítios onde trabalhei, juntei-me a um grupo e mantive-me no ativo por lá, mas agora que estou mais na estrada, e mesmo quando estava em Nampula já não tinha um Agrupamento. A verdade é que também não quis, porque iniciar uma dinâmica que ficasse dependente de mim, não me parecia justo porque seria uma questão de tempo até sair.

Flor de Lis – Quando estavas em Portugal qual era o teu Agrupamento? Qual foi o teu percurso no escutismo?

André Peixoto – O melhor de todos! Era do 674 Pombal. Entrei com seis anos e fiquei até aos 30. Enquanto estive em Portugal fui sempre escuteiro. Aos 30 anos passei pelos escuteiros em São Tomé, durante um ano. Depois, como disse, estive um ano e meio em Moçambique, num grupo.

Flor de Lis – Quantos anos tens atualmente?

André Peixoto – 36, quase 37!

Flor de Lis – Fala-me do teu projeto “De Chapa em Chapa”. Como é que surgiu?

André Peixoto – Todo este tempo que vivi em Moçambique, e sobretudo quando conheci a Joana, nós sempre tivemos vontade de viajar e de conhecer outras realidades para além de Moçambique.

Flor de Lis – Estavas a trabalhar numa ONG, certo?

André Peixoto – Estive como voluntário em São Tomé e em Moçambique, durante os primeiros três anos. Depois comecei a trabalhar numa empresa em Moçambique, quando me mudei para Nampula, que fazia parte de um grupo português e aí estava a fazer a gestão de um serviço de emergência médica. Fiz isso também durante três anos. Eu e a Joana fomos falando que era muito giro regressar a Portugal de jipe, porque não estávamos satisfeitos com a dinâmica de estarmos separados… Nós estávamos em cidades diferentes, a cerca de 700 quilómetros de distância e as viagens de avião eram muito dispendiosas. Se fosse de carro, demoraria um dia inteiro, isto se conseguisse chegar no próprio dia porque as estradas não eram assim tão boas. Até que um dia, numa das nossas viagens, vimos no aeroporto um carro e pensámos “E se nós comprássemos um carro para voltar para Portugal?”. Fomos fazer as contas e de facto entre trazer para cá um jipe ou comprar um carro aqui, com o pagamento de despesas aduaneiras, transporte do carro, etc… Era muito dispendioso.

Portanto, a Joana disse que sim e avançámos com a ideia. Claro que o nosso maior objetivo foi também mostrar um pouco da realidade de viver no continente africano, porque sentimos que as imagens que chegam são muitas vezes deturpadas, ou seja, fomos percebendo que as pessoas que não vivem no continente africano não fazem ideia de quão normal é a vida. Que a vida aqui é como em qualquer outro sítio, o contexto pode sim ser diferente, mas as pessoas não são. Muitas vezes fazem as mesmas coisas, têm trabalhos, no final do dia voltam para casa, algumas a pé, outras de bicicleta, outras de carro.

Flor de Lis – Vocês queriam de facto mostrar que é igual a outro lugar do mundo.

André Peixoto – É o essencial do nosso projeto. Mostrar que a vida em África é completamente normal, como qualquer outro sítio, com as devidas ressalvas de contexto. Têm os seus desafios do dia a dia, mas já não são pessoas que andam a caçar de arco e flecha e até têm cidades super desenvolvidas. Eu gosto muito de dar o exemplo de que a primeira vez que conduzi numa estrada com seis faixas para cada lado não foi na Europa, foi na África do Sul. Enquanto estava a conduzir, estava a ser ultrapassado por um Ferrari, um Mustang e um Lamborghini. É esta a realidade de África mas as pessoas nunca se lembram dela, lembram-se da miséria, das guerras, da fome, mas não se lembram das coisas boas. Nós queremos falar das coisas positivas que existem em África, porque nós sabemos porque vivemos aqui e fomos bastante felizes. Claro que vamos vendo outras coisas que em algum momento podem ser chocantes, mas são chocantes para quem nasceu em outro contexto. Para quem nasceu no contexto local, é uma situação que se encara com normalidade.

Flor de Lis – Consegues dar-nos um exemplo?

André Peixoto – É muito fácil passar numa aldeia, por exemplo, em Moçambique, e ver pessoas a carregarem água. Por vezes caminham 2 ou 3 quilómetros a levarem 20 litros de água para terem água em casa. Isto pode parecer uma coisa muito primitiva, mas as pessoas estão perfeitamente cómodas com isso. Eu que até gosto de refletir, pensei algumas vezes que se calhar não é tão errado quanto isso, porque estas pessoas têm uma vida completamente saudável, mesmo que tenham que ir buscar água. Elas só não estão protegidas a nível de saúde, porque de facto ter que ir buscar água não é uma coisa necessariamente pouco saudável. Nós na Europa passamos a vida sentados à frente de computadores, depois no carro, no autocarro ou no comboio e no fim ainda pagamos para ir ao ginásio! Será que no final do dia essa diferença importa assim tanto? Acho na verdade que não, porque estas pessoas vivem felizes, certo? São felizes nesta realidade. Portanto, o “De chapa em chapa” nasceu porque chapa é um tipo de carro que faz parte da história de Moçambique. Os transportes de passageiros são chamados de chapas e, em segundo lugar, porque chapa é o calão de fotografia e no fundo é um pouco a nossa forma de contar histórias. Ao longo da nossa viagem temos feito algumas entrevistas, que vamos colocar no nosso canal do Youtube, a pessoas que têm vidas exatamente como nós. Entrevistámos um casal sul-africanos, que são youtubers e criadores de conteúdo, é o que eles fazem da vida. E são brancos, aquilo que ninguém imagina, africanos brancos. Entrevistámos também um comediante em Moçambique que tem mais de um milhão e meio de seguidores só no Facebook, uma referência do humorismo. Contudo, vivem em Lichinga, uma cidade onde vivemos muito tempo. Não sei se somos jornalistas, mas a questão aqui é que estas histórias nos ajudam a contar a história na qual nós acreditamos. Sabemos perfeitamente que existem coisas negativas, mas como em qualquer outra parte do mundo. Nós somos privilegiados em ver as coisas positivas.

Flor de Lis – O vosso plano é então regressarem a Portugal na vossa chapa?

André Peixoto – É, estamos agora no ponto mais alto do continente africano. Agora a partir do Quénia, vamos passar pelo Uganda, Ruanda e vamos começar a descer novamente até à África do Sul e, quando aí chegarmos, vamos entrar já pela Costa Atlântica, passar pela Namíbia, Botswana, Angola.

Flor de Lis – Então o plano é fazerem a vossa viagem pela costa africana até chegarem a Portugal, certo?

André Peixoto – É mais ou menos esse o plano. O único e inegociável plano que temos. Não queremos fazer nenhuma parvoíce que coloque a nossa segurança em risco. Se em algum momento não nos sentirmos confortáveis colocamos o carro num contentor e regressamos a Portugal de avião ou de barco.

Flor de Lis – Quantos quilómetros estimam percorrer?

André Peixoto –  A previsão inicial era de 50000, que já é muita coisa. Mas na verdade, acho que vai passar. A situação que comprarmos este carro foi muito engraçada, porque eu nunca fiz nada do género. Sempre fiz muitas compras online, mas nunca tinha comprado um carro. Então, basicamente comprámos o carro online e pagámos com Paypal, o que garante alguma segurança mas que me deixou na mesma um pouco nervoso. Correu tudo bem, demorou três meses a chegar, mas chegou a Moçambique. Tinha na altura 134000 quilómetros e neste momento já vai com 160000, portanto acho mesmo que vamos ultrapassar a estimativa.

Flor de Lis – Tens alguma história engraçada que tenham vivido e que possas partilhar?

André Peixoto – Temos várias! Uma das grandes aventuras foi quando entrámos na reserva especial de Maputo, que é muito conhecida sobretudo pelos elefantes e a estrada é arenosa. A nossa carrinha tem tração às quatro rodas, mas a estrada estava em mau estado, a carrinha atolou, conseguimos retirá-la mas aqueceu. Continuámos o caminho e chegámos a um lago cheio de hipopótamos. Decidimos desligar a carrinha e ficar a apreciar um pouco a paisagem. Quando fomos a ligá-la para continuar caminho não ligava! A junta da cabeça estava queimada… Ligámos para a linha de emergência e passadas três horas chegou um senhor que disse que não poderia ligar a carrinha, só as pessoas. Nós só lhe dizíamos que não poderia ser, porque era a nossa casa… Lá ligou para alguém e explicou a situação e autorizaram a levar também a carrinha. O senhor era também mecânico, no dia seguinte juntei-me a ele como ajudante e passado um dia tínhamos novamente a carrinha a funcionar. Por 100 euros colocámos a carrinha novamente na estrada. A solução apareceu de forma miraculosa e enquanto estávamos a ser rebocados estávamos a ver manadas de elefantes a passarem à nossa frente!

Flor de Lis – Durante a vossa viagem veem paisagens de perder a respiração, não é?

André Peixoto – Eu diria que sim. Não vou mentir, mas ainda ontem dizia à Joana que em alguns momentos esperava um bocadinho mais. Eu faço 300 ou 400 quilómetros e de facto encontro paisagens incríveis, como por exemplo no Kilimanjaro. Contudo, acho que em alguns países falta alguma atenção paisagística, com boas paisagens com sítios acessíveis. Talvez porque em alguns países isso não seja uma prioridade. Mas eu adoro fotografia e em alguns momentos gostaria de ter mais um pouco em termos de fotografia. Pode parecer curioso, até meio estúpido, mas a verdade é que nós passamos por paisagens incríveis! Se calhar existem alguma falta de cuidado em estradas mais secundárias, que levam a paisagens ainda melhores.

Por exemplo, tivemos no Amboseli, aqui no Quénia. Paisagem brutal, com vista para o Kilimanjaro, também com vista para planícies e animais selvagens de todos os tipos. Sim, isso é brutal. Mas os acessos não existem. Nós, por exemplo, temos no centro de Portugal, uma estrada que percorre o Zêzere e tu, ao longo da estrada, tens vários miradouros, onde podes observar paisagens…Isso aqui não acontece tanto. Acontece muito na África do Sul, mas nos restantes países não. Não é que não esteja contente, mas gostava de ter mais.

Flor de Lis – Achas que de alguma forma o Escutismo te preparou para a tua aventura?

André Peixoto –Tenho a certeza, e tenho a certeza por várias coisas. A principal é a minha relação com a natureza, por ter crescido no meio ambiente. O escutismo incentiva-nos a viver na natureza e eu cresci com a vontade de explorar novos sítios, já fazia isso quando vivia em Moçambique. Sempre que tinha hipótese ia explorar, sempre o máximo que conseguia. Claro que no meu percurso escutista fui brindado com um conjunto de experiências que me fizeram ser a pessoa que sou hoje. Como a questão do preconceito, que tendo sempre desafiar, porque procuro estabelecer menos preconceitos possíveis e fazer menos juízos de valores possíveis. E isso acho que me coloca muitas vezes numa posição privilegiada de conhecer pessoas. Gosto de conhecer várias realidades e nós temos tido muita sorte. Por exemplo, muita gente vai a Zanzibar, que é uma ilha paradisíaca cheia de hotéis cinco estrelas, que toda a gente adora. Nós não ficámos nesses hotéis, não fizemos kitesurf, snorkeling. Gostámos muito mais de ir a um bar local, conhecer as pessoas que lá vivem. Sempre com naturalidade, porque a nossa abordagem é sempre muito sincera e honesta. De repente, estávamos a tomar café com o homem que vende café! Nós comíamos na rua, sentados com as pessoas que estavam na rua e fui completamente humilhado a jogar damas. Foi uma coisa indescritível, mas foi um momento muito giro, em que ele me dizia que se notava que eu sabia alguma coisa, mas que se notava que provavelmente em não jogava há muito tempo. Isto é que é giro, quando falas com pessoas no mundo. Hoje em dia parece que as pessoas só sabem falar através de telefones e e-mails. Alguém como nós que tem o privilégio de falar assim com as pessoas é uma sorte inexplicável. Acho que o escutismo teve um papel importantíssimo na minha vida, no meu crescimento. O jogo é uma coisa muito marcante no escutismo. Claro que o aprender fazendo é importante, mas a relação que o jogo cria, em que estabelece regras para te divertires é muito interessante. Muita gente acha que o importante do jogo é ganhar. Eu acho que um jogo serve acima de tudo para te divertires.

Flor de Lis – E no futuro, quais são os vossos planos? Querem trazer a vossa caravana para Portugal e depois há mais alguma aventura?

André Peixoto – Primeiro, sem dúvida é regressar. Depois não sei muito bem o que nos espera lá à frente. Quando chegarmos vamos ter a oportunidade de pensar o que fazer a seguir. Eu sou enfermeiro e adorei os momentos em que trabalhei como enfermeiro, porque acho que é mesmo uma profissão muito bonita. Apesar de ser uma profissão dura e muito difícil é subvalorizada, mas gostei muito de ser enfermeiro e é como me sinto. Mas não sei bem se quero voltar a sê-lo, porque sempre disse que não sabia se seria enfermeiro para toda a vida. Eu gosto tanto de fazer coisas, aprender, de experimentar coisas novas que não me vejo a fazer a mesma coisa a vida inteira. Parece-me um bocado redutor, não é? Portanto, não sei como será o futuro, mas gosto muito da área da fotografia e do vídeo, apesar de ainda estar numa curva de aprendizagem.  

Conhece mais do projeto “De Chapa em Chapa” neste link.

Texto: Cláudia Xavier

Fotografias: André Patrício Peixoto

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