Inês Branco: «“O Escuta tem sempre boa disposição de espírito” é uma das leis de que eu sempre gostei muito e tentei aplicar na vida»

Inês Branco era escuteira do CNE quando emigrou para França em 2014. Agora trabalha na Disneyland Paris e foi acolhida num agrupamento dos Scouts et Guides de France.

Flor de Lis (FL): Como surgiu o Escutismo na tua vida e onde é que foste escuteira?

Inês Branco (IB): Eu sou escuteira desde que me lembro, porque em minha casa toda a família era escuteira. Os meus pais eram Chefes, participaram na abertura de um agrupamento, e então sou escuteira desde pequenina, desde que tinha dois anos, quando eles se lançaram nesta aventura do Escutismo. Desde que me lembro, ainda antes de ter idade de ser Lobita, já ia aos acampamentos como «filha do Chefe», e depois fiz todo o percurso. Quando chegou a idade, entrei para os Lobitos, fiz o percurso todo, e depois fiz, quando chegou a altura, a formação para ser Chefe. Tornei-me Dirigente em 2004 e comecei na secção dos Lobitos. Uns anos mais tarde, integrei a Equipa Regional Pedagógica para a I Secção, onde estive seis anos também, continuando sempre ligada ao agrupamento, o 634 Alcanhões, na Região de Santarém. Fui Chefe de Agrupamento durante três anos. Estive sempre ligada à I Secção, um pouco por necessidade do agrupamento, mas também porque sempre gostei bastante de crianças e tenho jeito com os Lobitos. E isso também influenciou a minha carreira.

Entretanto, em termos profissionais, aconteceu algo que não estava previsto. Vim para França e, claro, procurei logo se havia aqui escuteiros, mas na altura não existia. Eu vim em 2014, não havia aqui perto, e eu também só estava em França temporariamente. Antes de decidir ficar aqui de vez, abriu um novo agrupamento aqui perto da Disneyland Paris, que é onde eu trabalho, e juntei-me logo a eles. Eu disse-lhes: «Sou escuteira em Portugal, faço uns meses de trabalho aqui em França, se vocês precisarem de ajuda…» Então houve um ano em que estava inscrita nos dois agrupamentos, em Portugal e em França. E depois decidi ficar em França de vez, acabei por sair do CNE e ficar definitivamente no Scouts et Guides de France (SGDF).

Em França, o meu agrupamento é o Groupe Val d’Europe, que pertence à SGDF. É um agrupamento recente, foi criado em 2016 e eu entrei em 2017. Isso eu nunca tinha visto, a criação de um agrupamento, a começar do zero e num mundo um bocadinho diferente.

FL: E quais são as tuas memórias preferidas da tua vida escutista?

IB: Tenho muitas. Em Portugal, sempre dos amigos, da família… A vida foi crescendo sempre à volta dos escuteiros. Tenho muitas memórias enquanto Chefe e enquanto jovem… Marcou-me com muito carinho o ACANAC de 1997 em Valado de Frades, quando eu era Pioneira. Uma atividade de que ainda hoje sei a música de cor. Mais tarde, já nos Caminheiros, o Rover 2001, onde eu não consegui participar. Estava inscrita, mas à última hora por motivos profissionais já não consegui. Mas fui lá no primeiro e último dia, e acompanhei todo o processo de desenvolvimento da Drave que existe hoje em dia. Participámos no Rover Açoriano em 2000, foi bastante giro. Depois, enquanto Chefe, fui ao ACANAC de 2007, que foi o primeiro em Idanha-a-Nova. Reuniu bastante gente. Eu era Chefe de Lobitos na altura, foi uma experiência muito gira também. Tive a possibilidade de participar de uma atividade de estrangeiro também enquanto staff no Roverway. Depois, dos seis anos em que estive na Equipa Pedagógica da I Secção da Região de Santarém, também guardo muito boas memórias. Do meu agrupamento, ainda tenho Lobitos da altura que mantém contacto comigo. É muito giro ver essa evolução e as pessoas que passam por nós, as pessoas que se cruzam no nosso caminho.

FL: Como tem sido o teu percurso profissional até agora?

IB: Eu estudei Comunicação Social em Lisboa no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Na altura queria ser jornalista. Mas depois mudei de ideias, achei que o jornalismo não era bem para mim. Eu sou uma pessoa tímida de natureza e o jornalista tem de ir à procura. Tive algumas experiências e depois percebi que não era bem isso que queria, então fui mais para a área do marketing, das vendas. Acabei por começar a fazer um estágio num grupo de lojas que já não existe hoje em dia, que era a Blockbuster, onde eu estive oito anos e fui gerente de loja, até as lojas desaparecerem. O mundo mudou e hoje em dia já ninguém vai alugar filmes fisicamente. Depois passei para gerente de uma sala de desporto, o VivaFit, uma cadeia de ginásios mais pequenos unicamente para mulheres. Fiz muitos desportos também, sempre foi algo que gostei bastante. Estive lá quatro anos e depois vim para França. Foi naquela altura complicada de 2013 a nível da crise financeira. Os ginásios começaram a ter muitas dificuldades em manter-se abertos, aquele acabou por ser vendido, eu fiquei desempregada.

Por causa dos escuteiros, sempre gostei muito de trabalhar com crianças, e fazia alguns trabalhos de animação de festas de aniversário em paralelo. Fiz uma audição para a Disneyland Paris, sem acreditar muito, e acabei por vir fazer uma experiência na área do espetáculo e da animação. Fui ficando e agora cá estou. Não tinha ideia nenhuma de emigrar, mas a vida acabou por dar essa volta. Fiz várias experiências, vários contratos temporários, até me decidir a ficar de vez aqui.

FL: E que trabalho fazes na Disneyland?

IB: Eu acompanhava as personagens no parque, na parte da parada. Atualmente, já não estou na parte do espetáculo, fui experimentar outros departamentos e voltei um bocadinho à parte comercial e à parte do marketing e das vendas. Estou no departamento de relação-clientes.

Houve uma abertura ao mercado português, a língua portuguesa passou a ser uma das línguas oficiais da Disneyland Paris em 2002 e eles precisavam em certos postos de pessoas que falassem português. Eu aproveitei a oportunidade para assim continuar sempre com o português um bocadinho presente.

FL: O Escutismo tem influência na tua vida profissional de alguma forma?

IB: Sim, tem. Mesmo a minha maneira de ser, acho que tudo foi construído no Escutismo. A forma de tentarmos sempre, no meu caso, ver o lado positivo, com aquela imagem em mente de dar o pontapé no “im” do “impossível”. «O Escuta tem sempre boa disposição de espírito» é uma das leis de que eu sempre gostei muito e tentei aplicar na vida. 

Depois é a questão do trabalho em equipa, o gerir… Acho que são coisas que nos ficam naturalmente. Eu, por exemplo, sou uma pessoa muito tímida. O Escutismo ajudou-me, nos Fogos de Conselho, a perder um bocado a vergonha de falar em público, de estar com os outros, de ser eu própria. Aqui em França, o Escutismo é uma forma de eu conhecer novas pessoas, de criar novas amizades, de sair um bocado do mundo do trabalho e ir ao encontro de outras pessoas. E permite-nos sempre conhecer pessoas fantásticas e ter novas experiências, não só com os jovens, mas também com os adultos.

Sem dúvida que o Escutismo é uma forma de estar na vida. Mesmo que um dia a gente deixe de usar o lenço e de estar ativo no agrupamento, eu acho que fica sempre cá algo e muda a nossa maneira de ser.

FL: Quanto à tua experiência no Escutismo francês, como é que foi a adaptação?

IB: Há muitas diferenças, há algumas semelhanças. Ao início não é fácil. Estamos habituados a fazer durante quase 40 anos de uma maneira e agora é outra. A essência é a mesma, mas a forma de trabalhar é diferente. Eu comecei por trabalhar nos Pioneiros, que era uma secção que nunca tive. Aqui nunca estive com os Lobitos, foi diferente. Eles precisavam de ajuda nos Pioneiros e eu «vamos lá, vai ser giro trabalhar com jovens». Já tinha sido catequista em Portugal com jovens da idade dos Pioneiros. E foi muito giro. Estive um ano com os Pioneiros e gostei bastante, apesar de ser muito diferente. Depois estive dois ou três anos nos Exploradores. E agora sou tesoureira. Deixei de estar numa secção. É uma das diferenças principais entre o SGDF e o CNE. Já sou velha demais para ser Chefe. No sistema do SGDF, os Chefes são muito jovens. Eles querem que os Chefes tenham uma proximidade de idade com os jovens.

No verão, por exemplo, segundo a pedagogia deles, deve-se fazer acampamentos sempre de uma semana para os Lobitos, duas semanas para os Exploradores e idealmente três semanas para os Pioneiros. Uma pessoa que trabalha não consegue ter essa disponibilidade. Eu, quando fui Chefe dos Exploradores, disse que não conseguia dar mais de uma semana de férias para o acampamento e fizemos só uma semana, enquanto pedagogicamente o que era estipulado era fazer acampamentos de verão de duas semanas, por exemplo. Daí eles quererem Chefes mais jovens. Outra diferença é que o Caminheirismo não é obrigatório, eles podem ir logo para Chefes a seguir aos Pioneiros. Nós temos Chefes com 16 ou 17 anos que ainda não são maiores de idade. São estudantes ainda, portanto têm três meses de férias no verão e podem partir em acampamento.

Eles também são regidos por uma instituição que é a Jeunesse et Sport, que é como se nós, CNE, fossemos regidos pelo Instituto da Juventude. Eles têm de se reger pelas regras e regulamento, então há imensas coisas que não se podem fazer. Quando temos de ser o que eles chamam de Diretores de Campo, que pode ser como o Chefe de Campo, temos de ter uma formação validada por esse instituto. Podemos ser inspecionados e há toda uma série de regras. Na preparação do acampamento, tudo é preparado ao detalhe. Temos um documento de 50 páginas que é o que eles chamam de dossiê de campo, onde tudo está especificado. Se eu envio os Exploradores para fazer um raide, tudo está escrito antes, e isso é a principal diferença. No CNE, quando fazia uma atividade, não havia a necessidade de escrever tudo, de ter tudo impresso, porque podemos ser inspecionados por uma instituição que vem e pode acabar com o acampamento se algo não estiver dentro das normas. Na comida, por exemplo, temos de guardar os rótulos de tudo durante uma semana. Abrimos uma lata de ervilhas, temos de guardar, tirar fotografias do rótulo da lata e escrever num caderno os números dos lotes. Se houver o caso de uma criança ir para o hospital com uma intoxicação alimentar, nós temos de apresentar um registo de todos os alimentos que foram dados. Há toda uma série de pequenos detalhes que tornam mais complicado, ainda mais em termos administrativos e logísticos.

Depois, não podemos enviar os jovens sozinhos a fazer um raide, por exemplo. Não se pode, não se pode. E a principal diferença também são as reuniões, que aqui é só uma vez por mês, e na minha opinião é muito complicado montar projetos assim. Já em Portugal é complicado às vezes conseguirmos seguir a pedagogia. Aqui, com uma reunião uma vez por mês, manter o fio condutor numa equipa é difícil. É suposto as equipas em autonomia fazerem reuniões, mas não fazem e é muito complicado pôr isso em prática. Uma só reunião por mês, por um lado, para os Chefes é bom, porque pensamos «Ah, é bom ter fim de semana». Planeamos as reuniões mais ou menos a três meses porque temos de dar essa informação aos pais. Os pais sabem logo com antecedência os sábados ou os domingos em que vai haver escuteiros, ou se for um acampamento. Por um lado é bom, porque temos mais tempo livre do que em Portugal, mas, por outro lado, eu acho que é mais complicado em termos logísticos de implementar uma pedagogia escutista. Mas eles acabam por vivê-la na mesma, de outra forma. 

Nas férias escolares não se pode fazer acampamentos, porque são as férias, e em Portugal é nas férias escolares que nós aproveitamos para fazer acampamentos. De início há muitas pequenas coisas que nós vamos aprendendo e ficamos um bocado chocados. É um bocado aquela situação do «Quem Mexeu no Meu Queijo?». Estamos habituados a fazer assim e agora não se pode? Mas vamo-nos habituando e percebendo. Eles aqui têm o sistema do acampamento de verão, que é obrigatório, faz parte da pedagogia, e nesse acampamento de verão é que se vai viver uma grande parte do Escutismo e do que se aplicou durante o ano.

A parte da religião também é diferente, aqui é mais liberal. Apesar de ser um movimento da Igreja Católica, podemos ter jovens de outras religiões, não é obrigatório que sejam batizados ou que sejam crentes. As promessas não são obrigatórias. Eles já nem chamam “promessa”. A tradução literal para o português seria o “compromisso”. O jovem ou o Chefe é que escolhe se quer fazer o compromisso. Pode ser escuteiro a vida toda e não querer fazer o compromisso. Nós recebemos o lenço na promessa em Portugal, aqui o lenço é logo dado ao início. 

A parte dos adultos também é diferente. Uma pessoa pode não ter formação de Chefe. Por exemplo, agora, como sou tesoureira tenho a camisa violeta, sou o que chamamos os “violetas” – ou seja, os tesoureiros, os secretários, o Chefe de Agrupamento – e não precisamos de ter sido Chefes. São pessoas que não precisam de fazer a formação de Chefe, fazem uma formação específica para a sua função, geralmente num fim de semana, e recebem logo o lenço, a camisa e se quiserem nunca fazem promessa. Temos agora um “binome” de Chefes de Agrupamento e elas nunca quiseram fazer a promessa.

FL: É tudo bastante diferente! E a adaptação, como é que te sentiste acolhida pelo teu agrupamento em França?

IB: Fui super bem recebida, principalmente porque era um agrupamento muito novo, tinha meses. A maior parte das pessoas nunca tinha feito Escutismo na vida, e quando cheguei fui muito bem acolhida no sentido de «Ah, alguém com experiência!», mesmo que depois tenha sentido muito essa barreira das diferenças. Mas fui sempre muito bem recebida e ainda hoje somos um bom grupo, já me fui cruzando com várias pessoas. A adaptação, apesar das diferenças, foi-se fazendo dentro do que era possível, mas fui bastante bem recebida.

FL: Que mensagem queres deixar ao CNE?

IB: Tenho saudades de escuteirar em português (risos). Ainda sou próxima de muita gente que continua ligada ao movimento e vou sempre olhar para o CNE com carinho.

Aqui, algo que também foi positivo, foi eu não ter de fazer formação nenhuma. Eu já tinha a formação de Chefe do CNE, o CIP e o CAP, que aqui não é reconhecida, mas eles com isso validaram-me a formação para Chefe. Mesmo quando tive de ser Diretora de Campo, fui validada. Essa é outra diferença. A formação de Chefe é válida fora do Escutismo. O Chefe que faça o que eles chamam o BAFA aqui pode ir trabalhar para uma colónia de férias. Essa formação é válida a nível nacional, é uma formação que eles podem fazer em termos do Escutismo ou fora. Às vezes podemos receber um jovem que já tem um BAFA, já fez essa formação através de qualquer outra instituição, vai só fazer um fim de semana de adaptação à pedagogia do Escutismo e está validado como Chefe, não precisa de fazer mais formação nenhuma. Nesse aspeto foi uma boa surpresa, mais aberto e mais fácil, mesmo em termos de recursos adultos. Se precisamos de um Secretário, há um pai que está disponível e não implica que ele não vai ter de fazer o CIP ou ter de entrar para o Movimento. Ele não quer trabalhar com as crianças, quer apenas ser Secretário do agrupamento, e eles dão essa abertura. Acho nesse aspeto mais fácil, daí ter-me sentido muito acolhida.

Mas tenho muitas saudades do CNE, da experiência, das músicas… Apesar de aqui também haver músicas giras! Até mesmo da farda. Aqui só há a camisa e o lenço, muitas vezes uso os calções do CNE porque são práticos, e o cinto. Será sempre um Movimento que vou olhar com muito carinho e faz parte da minha vida e da minha maneira de ser.

Entrevista: Catarina Valada.

Fotos: cedidas por Inês Branco.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *


O período de verificação do reCAPTCHA expirou. Por favor recarregue a página.

Website protegido por reCAPTCHA. Aplica-se a Política de Privacidade e os Termos de Serviço da Google.