Pedro Duarte Silva: «A literacia financeira só está afinada se tivermos em mente e em meta o bem comum.»

Com uma carreira notável na área da economia e finanças públicas, Pedro Duarte Silva – coordenador do Clã Académico de Lisboa e do Adro – esteve à conversa com a Flor de Lis sobre literacia financeira.

Flor de Lis (FL): Falemos sobre o teu percurso escutista. Onde é que começaste e como é que chegaste onde estás hoje?

Pedro Duarte Silva (PDS): Eu iniciei o meu percurso no Agr. 75 Estoril, em 1981. Tinha 11 anos. Fiz todo o percurso no Estoril: Explorador, Pioneiro (Juniores e Seniores na altura), Caminheiro e depois fui para Dirigente. Fui Chefe de Exploradores, fui Tesoureiro, fui Chefe de Agrupamento, fui Chefe de Clã, depois voltei a ser Chefe de Agrupamento e outra vez Chefe de Clã. E estive no Estoril até 2008, com uma breve interrupção em 2004.

Depois estive na Junta Regional de Lisboa entre 1996 e 2002. Entre 2003 e 2004, durante nove meses, fui Chefe Nacional Adjunto. Entretanto também fui Secretário de Núcleo e Regional Pedagógico. Em 2008, fui para a Junta Central como Secretário Nacional Pedagógico, onde estive até 2017. Desde aí, não voltei a nenhum agrupamento. Tenho estado a coordenar o Clã Académico de Lisboa. E também tenho estado, desde 2020, a coordenar a organização do Adro. 

Pelo meio, fui durante quatro mandatos membro do Comité Europeu da CICE (Conferência Internacional Católica do Escutismo) e estive envolvido em outras equipas de trabalho a nível europeu.

FL: Tens alguma memória especialmente marcante no Escutismo de quando eras mais jovem?

PDS: Houve tantas. Tudo foi muito impactante no meu crescimento e desenvolvimento pessoal, em termos de valores, de fé, de sociabilidade, em termos de visão da vida e das pessoas e do outro. 

Tudo foi muito marcante, nem sempre necessariamente pelas grandes atividades; às vezes, as pequenas marcam mais. Mas tenho experiências muito interessantes nos Pioneiros. A minha equipa de Pioneiros, em 1985, meteu na cabeça que ia fazer um acampamento na Madeira, numa altura em que ninguém do continente ia à Madeira. Ou ninguém ia para um acampamento de avião. Isto hoje é normal, mas em 1985 não era. Foram dois anos de angariação de fundos, de organização, contactos para lá… E sem Dirigentes. Fomos sozinhos. Estivemos lá quase três semanas. Foi uma coisa muito marcante, porque na altura era absolutamente fora da caixa um Empreendimento desta envergadura. Hoje uma pessoa com 100 € vai a Londres e volta, mas na altura o custo de vida e os preços dos voos eram muito diferentes. Portanto, foi um Empreendimento grande que nos deu bastante trabalho, mas também nos deu uma sensação de conquista. Um dos nossos elementos tinha família na Madeira, por isso tínhamos apoio a esse nível. Demos a volta a quase toda à ilha à boleia e a pé. Na altura andávamos à boleia, era uma coisa normal nas atividades e que eu gostava muito. Hoje, a perceção de segurança que nós temos impede-nos de fomentar ou de praticar a boleia. Mas na altura era perfeitamente normal uma pessoa ir para o acampamento à boleia, ou andar à boleia no acampamento. E tanto se andava em cima de um trator como em cima de uma carroça; andei de boleia em táxis, em ambulância, em camiões, no carro do padeiro (em que as mochilas ficaram todas enfarinhadas). Eram sempre encontros engraçados de troca de experiências. As pessoas contavam histórias suas. Tenho pena de termos perdido essa liberdade de poder andar à vontade, esticar o dedo e apanhar um carro e conversar com alguém que não sei quem é, mas ele também não sabe quem eu sou, mas conversamos ali durante meia hora. 

Nos Caminheiros, por exemplo, quisemos ir aos Pirenéus. Então pusemos na cabeça que íamos ao Aneto, que é o pico mais alto dos Pirenéus. E fomos. Chegámos lá acima, absolutamente desprovidos do equipamento que hoje qualquer pessoa levaria. Nós íamos de calções e t-shirt, botas ou uns ténis, uns ferros a fazer de apoio, etc… A certa altura, passam por nós uns tipos todos equipados… Eu hoje penso, nenhum miúdo sob a minha responsabilidade fazia aquilo como eu fiz, mas pronto, teve a sua graça. Foram momentos engraçados também de desafio, de superação, de muito esforço e coesão de equipa e de espírito de comunidade.

FL: Agora sobre o teu percurso profissional, de que forma é que estás ligado à área da economia?

PDS: Eu sou licenciado em Economia, depois fiz um mestrado em Economia Monetária e Financeira. Ainda fiz uma pós-graduação, uma parte letiva num mestrado em Teoria e Ciência Política. Essa foi a minha formação ao longo dos anos. E comecei a trabalhar logo, ainda estava a meio do mestrado, para a Administração Pública. Fui trabalhar para o Ministério das Finanças, num gabinete de estudos. Fiz muito do meu percurso, portanto, em gabinete. Estive sempre ligado à área dos estudos económicos e de finanças públicas. E pelo caminho fui saindo e voltando, do meu serviço de origem. Estive na direção de diversos serviços, entre os quais uma estrutura de gestão de fundos comunitários, e em diversos gabinetes ministeriais. Desde 2013, e até 2024, estive no Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério das Finanças, com várias funções ao longo dos anos. E, presentemente, sou Chefe de Gabinete da Secretária de Estado da Mobilidade.

FL: E achas que surgiu no Escutismo alguma vontade de seguir esta área ou que o Escutismo te deu algumas competências que foste usando pelo caminho? 

PDS: Eu tinha o problema de ser bom aluno a tudo. Portanto, quando ia fazer testes vocacionais nos gabinetes de psicologia lá no liceu diziam-me: «Ah, dá para tudo.» Bem, obrigado, que ajudinha! [risos] Mas eu tinha uma inclinação maior para as áreas das humanidades, e a economia faz um bocado a charneira entre as humanidades e as ciências mais ligadas à matemática. E na economia o que eu gosto é mais a questão macro e organizacional, da perceção do funcionamento da economia, e nem tanto a microeconomia ou as finanças. 

Trabalhei sempre em gabinetes de estudos em áreas macroeconómicas, produção de cenários económicos, orçamento de Estado, gestão de finanças públicas… Mas não acho que o Escutismo tenha propriamente sido o local que me fez fazer essa escolha. Se ajudou? Se me deu competências? Sim, imensas. Deu-me competências no sentido da organização, da gestão de projetos, da gestão de equipas, da relação com o outro, que eu acho que é uma competência fundamental para qualquer um de nós. Até competências do falar em público. Toda uma série de competências, de soft skills, de desinibição e de desenvolvimento do ser que me foram extremamente úteis na minha vida profissional.

Eu fui Chefe de Agrupamento muito cedo, uma ou duas semanas antes de fazer os 21 anos. Foi no princípio dos anos 90, isto era normal, o paradigma era outro. E muitas vezes ia fazer a abertura do agrupamento e tinha de falar para uma plateia de 300 pessoas. Eu que sempre fui tímido e introvertido tremia que nem varas verdes, como é óbvio. Então, eu preparava o que ia dizer num discurso todo trabalhado, com os pontos de interrogação no início da frase para saber que tinha de começar com a entoação de interrogação. Ou seja, trabalhava o texto a este nível de ensaio. Mas fez-me bem essa experiência. Depois, nas vezes seguintes, já não trabalhava tanto o texto. E, se calhar, houve vezes em que já só levava meia dúzia de bullet points e depois o resto saía. E isso deu-me uma certa desinibição. Agora, se tiver de ir falar numa plateia de 300 pessoas, não tenho problema nenhum, desde que esteja convicto do que vou dizer. Se não fosse o Escutismo, eu não tinha chegado aí. 

FL: No Clã Académico estás em contacto direto com jovens universitários no início da vida independente. Como é que sentes que está o nível de literacia financeira deles?

PDS: Não posso dizer que haja um padrão único. Há pessoas que vêm muito treinadas. Há um ano e tal tinha um Caminheiro que era administrador do condomínio dele e o edifício tem à volta de 200 fogos. Há outros que só têm a sua mesada para gerir e é a primeira vez que têm de fazer as contas da compra da alimentação, a propina, os livros… Têm de gerir eles próprios não só o pocket money para as saídas, mas também o dinheiro com que vivem ao longo do mês e que tem de ser racionado, porque as coisas são caras e o dinheiro também não abunda. 

Eu lido muito com os jovens que estão deslocados. Esses, quer queiram quer não, têm de aprender, porque se a sopa aparece à noite, ou foi porque ele foi à cantina e pagou, ou foi porque ele comprou os legumes e fez a sopa. E esta necessidade da vida quotidiana ajuda na literacia financeira, ajuda a dar o justo valor ao dinheiro, ajuda a perceber como é que é o equilíbrio consumo-poupança, ajuda a perceber como olhar para o mercado e para os preços e para os bens com um olhar mais apurado. Um jovem que ainda esteja no conforto da casa materna e paterna em que tudo lhe chega e o dinheiro é só vivido do ponto de vista da gestão do seu lazer, a literacia vem mais tarde. A literacia financeira não é dos livros, é da vida quotidiana. Eu acho que aí é que se aprende. 

Hoje em dia, muitos dos jovens desde cedo começam a fazer pequenos trabalhos para ganhar o seu próprio dinheiro. Trabalhos de verão, trabalhos part-time, etc. Isso dá-lhes uma certa resistência e dá-lhes uma certa “habituação” a trabalhar com as questões financeiras. 

A gestão do dinheiro não se faz sem perceber o sentido das coisas. Ninguém faz uma boa gestão do dinheiro se não perceber o justo valor do dinheiro, a relação do dinheiro com o trabalho e com o aforro e com estes equilíbrios. Portanto, só tendo este sentido de equilíbrio é que há necessariamente uma boa gestão. A pessoa pode ter muito ou pouco, mas gerir bem ou gerir mal. Não é a quantidade que dita. É, de facto, a atitude. E a atitude precisa deste substrato de perceber o justo valor, de perceber a questão do desperdício, a questão do valor das coisas, do sentido do trabalho, a poupança, o aforro para consumir mais tarde. Para isso é preciso pôr as mãos na massa e sentir os desafios do quotidiano. 

Depois podemos falar de literacia financeira de um ponto de vista mais complexo. As questões dos mecanismos de poupança, as questões fiscais ligadas aos impostos, as questões de arrendamento, etc… Outros campos de desenvolvimento que já vêm com a vida mais adulta e mais independente, sobretudo, e que são coisas que a escola não ensina. 

FL: Achas que o Escutismo é uma boa escola para a literacia financeira?

PDS: Os escuteiros podem ensinar algumas coisas, a família terá de ensinar outras. E muitas terão de ser aprendidas à custa da tentativa e erro do próprio também, da exploração das oportunidades pelo próprio.

Eu acho que o Escutismo tem um papel muito importante na literacia financeira, porque começa desde os Lobitos com uma figura que é o tesoureiro do bando. Na escola isso não acontece; é a primeira vez que um miúdo de sete ou oito anos tem para gerir um dinheiro que ganharam porque angariaram e trabalharam, ou porque partilharam através de uma quotização, ou que obtiveram de outra forma qualquer. E têm um sonho, têm um projeto. Querem fazer uma Caçada, uma Aventura, um Empreendimento, uma Caminhada, o que quer que seja, e têm de fazer render o dinheiro. «Compro batatas ou compro arroz? Compro bife de vaca ou bife de peru? O dinheiro dá para isso ou não dá? Não dá para ananás, mas dá para maçãs. E agora guardamos? Não vamos gastar tudo, vamos poupar para depois comprar o material que a patrulha precisa.» Este jogo do quotidiano nos nossos acampamentos e atividades é basilar para uma literacia financeira saudável. Saber viver com recursos limitados, saber geri-los, saber trabalhar para angariá-los e multiplicá-los, saber como melhor aplicá-los… Esta dinâmica, em que o tesoureiro tem um papel fulcral, é onde se ganha literacia financeira. 

Um miúdo que não tem esta experiência, não cria estas bases tão cedo. O pai dá-lhe dois euros antes de ir para a escola, ele come um bolo e no dia seguinte recebe outros dois euros. Não estou a dizer que sejam todos assim, porque há pais que eles próprios induzem dinâmicas de habituação dos miúdos ao dinheiro, que é fundamental. Se não há uma dinâmica, acabam por achar que o dinheiro é fácil, é só carregar na máquina e ela te dá notas. Isto é o grau zero da iliteracia, que é normal para um miúdo de cinco ou seis anos. E, portanto, é preciso levá-lo a perceber o que está por trás da máquina e o valor daquelas notas e para que elas servem e que são limitadas e como é que se ganham, como é que se usam. Nisso, o Escutismo, com a sua prática do sistema de patrulhas, tem essa virtude. 

Muitas vezes, quando queremos fazer um projeto, a primeira coisa que se pensa é onde podemos pedir subsídios e apoios e patrocínios. Não estou a dizer que não se faça. Mas acho que não podemos começar por aí. Se queremos aplicar o método escutista propriamente dito, vamos começar a ver como é que conseguimos trabalhar para juntar dinheiro. É vender calendários, é vender rifas, é vender manjericos, é fazer uma barraquinha no Santos em que vendemos bifanas e febras… Não interessa. Mas temos de começar por esta relação trabalho-dinheiro. O trabalho dá-me meios para eu desenvolver projetos, ou por capacidades ou por oportunidades, que quero e concretizar sonhos. Esta ligação é virtuosa para uma boa literacia financeira. Porque se não dermos justo valor ao dinheiro, estamos a criar consumistas. Uns têm a sorte de ter dinheiro e outros não. E na vida haverá sempre uns que têm mais que outros. Mas é importante que todos deem o mesmo justo valor. 

O dinheiro é o trabalho de alguém e é a expressão de um trabalho que alguém desenvolveu, que é posto a render e pode servir para pagar uma sopa, comprar um carro, comprar um livro ou ir para umas férias. Não estou a julgar atos, mas é preciso que se dê o justo valor ao dinheiro e que se perceba de onde vem e como usá-lo. E a literacia passa muito por isso. Passa também pela compreensão. Não haverá também uma boa literacia financeira se não houver uma compreensão de que nós não somos donos, somos gestores dos bens que são colocados à nossa disposição ou que conseguimos desenvolver e criar ao longo da nossa atividade. E, portanto, temos uma obrigação moral e espiritual de fazer uma boa aplicação das coisas.

Temos de perceber que nem todos temos igual e que tem de haver um espírito de solidariedade e de distribuição e de trabalhar para o bem comum. A literacia financeira só está afinada se tivermos em mente e em meta o bem comum.

Entrevista: Catarina Valada.

Fotos: cedidas por Pedro Duarte Silva.

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