
Preparar o KISC JOTA-JOTI na segunda edição da Digital Work Party
Após o sucesso da edição passada, o Centro Escutista de Kandersteg organizou mais uma edição da Digital Work Party, de 24 a 30 de março, com presença portuguesa!
André Corrêa d’Almeida é o presidente e fundador da associação All4Integrity, uma organização de combate à corrupção. Iniciou a sua vida escutista no Agr. 73 Carnide e fundou o Grupo de Escuteiros Lusófonos de Macau (GELMac), Agr. 341 do CNE.
Flor de Lis (FL): Como é que surgiu o Escutismo na sua vida e onde foi escuteiro?
André Corrêa d’Almeida (ACA): Eu fui escuteiro no Agr. 73 Carnide. A vida paroquial de Carnide é guiada por uma comunidade franciscana, onde o meu pai era e continua a ser cardiologista. E eu sou o mais velho de nove irmãos. Os meus pais foram sendo encorajados a colocar os filhos nos escuteiros, não só pela proposta educativa do Escutismo, mas também para que pudessem ter algum tempo para eles próprios. Então era esta a relação entre a minha família, os franciscanos e o 73, que era o agrupamento da zona.
Eu não entrei logo para os escuteiros. Quem entrou primeiro foram os meus irmãos, o António e o Bernardo. Nunca fui Lobito. Na minha idade, na fase etária de Lobito, eu estava mais interessado nas minhas atividades desportivas. Mas houve um acampamento dos meus irmãos Lobitos, creio que nos Salesianos do Estoril. E, tal como é tradicional, os pais foram convidados para ir ao Fogo de Conselho. Os meus pais levaram-me. Eu não era Lobito, mas tinha muitos amigos da escola e da rua que eram Lobitos e que estavam nesse acampamento, que fizeram uma pressão simpática para eu ficar. E até os chefes na altura, a Chefe Fátima e a Chefe Beta, Áquelá histórica do 73, me convidaram a passar lá a noite. E eu passei e gostei imenso. No ano escutista seguinte, entrei para Explorador. Estamos a falar de finais dos anos 70.
Estive em Carnide até ir para Macau em 1996. Fiz Exploradores, Pioneiros e Caminheiros. Depois fiz a promessa de Dirigente e com 25 anos vou para Macau, quando acabei o curso de economia na Universidade Nova de Lisboa. Na altura fui recrutado por um padre franciscano, que era o diretor da Faculdade de Teologia da Católica. Fui convidado a integrar a equipa que haveria de criar a Universidade Católica em Macau. Estamos em 1996, quatro anos antes da passagem de Macau para a China. E então, 450 anos depois, Portugal lembrou-se que ainda não havia uma universidade de matriz lusófona, cristã e ocidental naquele território. Deram-me uma semana para decidir se eu queria ir para Macau. Eu disse que sim num dia.
Depois vim a criar o Agr. 341 Macau, que nós chamamos em sigla o GELMac, Grupo de Escuteiros Lusófonos de Macau. Criei com a ajuda de alguns escuteiros que também viviam em Macau e muitos que em Lisboa ajudaram a montar a “operação”. Depois foram-se juntando outros. A Celeste e o Armindo, por exemplo, que eram escuteiros de Vizela e foram-se mobilizando em torno deste embrião que estava a nascer. E também a Patrícia
dos Marítimos. Recuperámos o número 341 de uma iniciativa dos anos 70 ou 80 do Dom Bosco. Macau tem o Colégio Dom Bosco e tinha havido uma tentativa de criar um agrupamento mas que não se conseguiu sustentar. E nós recuperámos esse número, até por uma questão administrativa, para facilitar a reativação do grupo.
GELMac porquê? Era muito importante sinalizar o posicionamento ao nível da língua e cultura, e não propriamente da Igreja ou de uma religião em particular, porque num território diverso como o de Macau, um projeto educativo desta natureza só fazia sentido se fosse inclusivo. Não escondíamos que o 341 era do CNE, do Escutismo Católico Português, e íamos à Missa uma vez por mês, mas para a comunicação interna e a mensagem que queríamos transmitir, a designação que utilizávamos era GELMac. E o grupo está vivíssimo; foi criado em maio de 1997, portanto tem quase 30 anos.
A proposta pedagógica que eu apresentava era um bocadinho “fora da caixa” para aquela elite urbana portuguesa que lá estava e portanto tive reuniões com pais, com jovens, até o bispo, etc, mas o pitch que eu lancei foi o pitch do Jamboree, que haveria de se realizar em 1998 no Chile. No dia 11 de maio de 1997, tínhamos preparado o primeiro dia de atividades para 60 pessoas, com vários jogos de vários tipos. Apareceram 120 jovens. Tínhamos dito especificamente na imprensa que era só até Pioneiros, não havia capacidade para ter Caminheiros. Os adultos na idade de Caminheiros eram precisos para ajudar a animar as outras secções. Mas apareceu uma quantidade enorme de pessoas com idade para ser Caminheiras.
Vou contar uma história da irmã de Baden-Powell que acho ser pertinente. O GELMac lança-se em maio de 1997 e em 1999 tínhamos a Conferência Mundial em Durban, na África do Sul. Gostava, na altura, que o GELMac também participasse na Conferência Mundial. E o secretário internacional da altura diz «mas não há escuteiros do CNE em Macau». Ora, num dos acampamentos pouco depois de Brownsea, apareceu a irmã de Baden-Powell e outras escuteiras. E B-P pergunta-lhes: «Quem são vocês?». «Nós somos escuteiras!» E B-P diz «Mas não há escuteiras…», ao que elas respondem «Somos nós!». E a resposta que eu dei ao secretário internacional foi: «Não há escuteiros em Macau? Somos nós! Estamos aqui!»
Depois, eu regresso a Portugal em 2000 e não volto para a vida de agrupamento, porque estive envolvido em grandes projetos nacionais. Fiz parte da equipa que criou o Roverway, que foi concebido por sete escuteiros de Carnide e do Estoril. Desenvolvemos o conceito, apresentámos na Suíça, em Genebra, e depois passámo-lo para a Junta Central. Na altura havia um call da instância internacional, de Genebra, para se repensar o Moot. O Moot era um modelo que estava falido, era um get-together para Caminheiros, guitarradas… Estava muito falido de conteúdo. E as instâncias internacionais sabiam isso e lançaram um call às organizações nacionais para pensarem num novo modelo de atividade internacional para a faixa etária dos Caminheiros. Nós pegámos no desafio e concebemos o Roverway, que aconteceu na Lagoa da Ervideira, Leiria, e foi um sucesso em 2003.
Venho para os Estados Unidos em 2005 e deixo a vida escutista ativa, já com 35 anos. Aqui nos Estados Unidos o Escutismo é diferente. Para já, rapaz e rapariga estão separados e Nova Iorque não é uma cidade muito friendly para Escutismo.
FL: Foram grandes epopeias no Escutismo! Conte-nos também um pouco acerca da vida profissional.
ACA: É engraçado porque está muito ligado com os escuteiros, não é? Tudo começa quando vou para Macau. Eu fiz economia na Nova. Não gostei nada daquele processo de entrevistas em bancos e em consultoras. O setor privado não funcionou muito bem para mim, não me senti particularmente adequado ao setor privado e por isso é que voltei a alguns professores a perguntar acerca de oportunidades na academia. E é aí que eu vou para Macau, por causa do projeto da Universidade Católica e trago a ideia dos escuteiros logo de início. Foi a constatação de que não havia propriamente propostas educativas para a juventude em Macau, para além da escola. As famílias viajavam muito, havia muito investimento no desporto, nas artes, mas havia um grande vácuo de propostas educativas de vida ao ar livre, natureza, projeto em equipas, espiritualidade, etc. A questão central era que as pessoas estavam sempre a circular. Vinham para Macau por um ano, dois ou três, e portanto nunca havia uma permanência que desse sustentabilidade a esses projetos. Este era até o argumento usado para me dizerem “André, não te metas nisso!”
Aliás, já havia Escutismo em Macau, só não era o Escutismo de matriz semelhante ao CNE. A Ásia tem uma tradição escutista brutal dentro do próprio sistema de ensino. Na maior parte dos grandes países asiáticos – a Indonésia, Índia, China, Taiwan – o Escutismo é uma extensão da vida escolar. Mais militarizado, mais disciplinado. Mas não havia Escutismo da tradição ocidental.
Mas a minha vida profissional começa aí, em Macau, logo na via académica, embora com funções mais de gestão. Eu era o diretor executivo deste novo projeto universitário, que se foi desenvolvendo paralelamente com o Escutismo. O presidente da comissão instaladora da universidade era franciscano e, portanto, deu-me todo o apoio e flexibilidade para eu desenvolver este projeto de serviço público.
No fundo, era também um pouco o testemunho que a Universidade Católica estava a deixar no território. Eu regresso a Portugal mesmo no final do século, depois da transição de Macau para a China. Era esse o meu horizonte lá, acelerar a incubação desta universidade antes da transição. Sou convidado pelo professor João Borges da Assunção a ficar na Católica em Lisboa, na Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, embora eu seja da Nova. Foi uma combinação interessante de experiências entre duas instituições diferentes, mas igualmente prestigiadas. E aí dedico-me mais ao académico; se em Macau eu tinha funções mais executivas, em Portugal é onde se inicia propriamente a minha vida académica ao nível da lecionação e da investigação. Primeiro, na Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, mas também na Faculdade de Ciências Humanas, trabalhei muito com o professor Luís Valadares Tavares e com o professor Roberto Carneiro, de quem sou ainda muito amigo e “discípulo”.
Entre 2000 e 2005 em Portugal, ajudei a desenvolver a digitalização de uma cadeira. Foi a primeira vez que se introduziu testes online. Note-se que estamos no princípio da internet, e introduzimos testes online para uma cadeira de introdução ao cálculo financeiro. Foi um período em que a Católica ajudou a Câmara Municipal de Sintra a desenvolver o conceito de cidade digital – atualmente utiliza-se a expressão smart city – mas os primeiros passos, na altura, foram sobre a égide da Edite Estrela. Foi um projeto liderado pelo professor Valadares Tavares, e eu era também consultor nesse projeto de investigação aplicada.
Nessa fase também participei na criação do Observatório da Imigração com o professor Roberto Carneiro. Foi o primeiro esforço em Portugal sob a alçada do ACIME. O ACIME era o Alto Comissariado para as Migrações e Minorias Étnicas e era o padre Vaz Pinto que liderava. Tinha como braço direito o Rui Marques, que era o Alto Comissário Adjunto, convidou o professor Roberto Carneiro a desenvolver o Observatório de Imigração, e eu fui o operacional que desenvolveu esse observatório na fase inicial. O ACIME agora tem outro nome, mas a instituição existe, e foi o princípio de uma longa agenda de investigação que se desenvolveu e continua a desenvolver em torno do estudo dos fenómenos migratórios em Portugal. Eu sou o autor do primeiro estudo dessa sequência.
O meu estudo foi precisamente o impacto nas contas públicas da imigração. Na altura, no princípio dos anos 2000, o muro de Berlim tinha caído há 11 anos e a paisagem humana em Portugal tinha-se transformado completamente. Já não era só a questão das pessoas que tinham vindo dos PALOP depois da Revolução e mesmo até do Brasil, que sempre foram vindo para Portugal. Era sobretudo uma paisagem mais eslava que foi percorrendo a Europa toda a partir da queda do muro e se foi fixando em Portugal. Era importante perceber tudo isto. Já se começava a ouvir discursos novos e mal informados em Portugal, não tão grave quanto é agora, mas já preocupante.
Em 2005 vou fazer o doutoramento. Tanto o professor Roberto Carneiro como o professor Valadares Tavares começaram a dizer que era a altura de partir novamente. Fui para Denver estudar a questão das políticas públicas e desenvolvimento. Estive os dois primeiros anos em Denver e o trabalho de campo fiz em Moçambique entre 2007 e 2010. Concluo o meu doutoramento em 2010 e a Columbia University contrata-me precisamente por causa do trabalho que eu andava a fazer em África, para coordenar o programa que atualmente coordeno na School of International and Public Affairs. É um programa de mestrado com alunos que vão tipicamente desde os 25 até aos 35 anos de idade, e está focado em desenvolver, aplicar, avaliar, desenhar e conceber projetos de intervenção na área da educação, da tecnologia, alimentar, da saúde, das alterações climáticas, etc. E está particularmente focado na parte prática.
E esta palavra, “prática”, é um resumo da minha carreira profissional. Eu gosto de estudar as coisas, mas sou uma pessoa de ação. Se se recomenda que se faça XYZ para alterar o estado das coisas, então é isso que vou fazer. Acho que até sou mais forte na mobilização de atores para a mudança do que propriamente na investigação. E o escutismo é uma manifestação disso. O Roverway, os escuteiros em Macau, mostram essa minha ligação com a intervenção cívica prática nos contextos em que nos movemos e em que vivemos.
FL: Voltando então ao Escutismo, sente que leva o Escutismo todos os dias na pasta para o trabalho?
ACA: Claro, é o fazer a diferença. É aquele pontapear o “im” do “impossível”. As pessoas que me conhecem melhor percebem porque é que eu me refiro a este “impossível” para descrever um pouco daquilo que é a minha atitude na vida. A vida tem-me colocado desafios improváveis que têm florescido de formas incríveis. Não é só graças a mim, claro. Mas eu acho que a energia e a paixão que eu coloco nas coisas ajuda a mobilizar outros. O resultado final é o resultado do trabalho coletivo. Mas a energia importa, a química importa, as competências de comunicação importam.
Sim, o Escutismo vem para o trabalho em vários níveis. No nível do querer fazer a diferença, do pontapear o “im” e das competências sociais. Sou o mais velho de 9 irmãos e logo aí houve muita competência social que teve que ser desenvolvida. Mas o Escutismo e o campo de férias da EDP em Castelo de Bode em que fui monitor foram fundamentais.
A ideia do trabalho em grupo é muito importante e vem do Escutismo. Mas há prós e contras. Há aspetos da organização da vida do agrupamento que ajudam imenso a desenvolver o espírito de comunidade e todas essas competências sociais, como a metodologia do projeto da avaliação, etc. Mas, na minha experiência, eu tinha escuteiros, eu tinha atividades ao sábado e ao domingo, conselhos de guias à sexta à noite e reuniões de direção às quartas, uma vida intensíssima. E eu acho que me roubou tempo aos estudos. Mesmo estando a ter uma carreira profissional interessante, tenho pena de não me ter interessado mais pelos estudos, principalmente ao nível da licenciatura. Havia colegas meus que eram o oposto, faltavam a atividades, estavam menos disponíveis, e depois vieram a ser melhores alunos. Portanto, eu acho que aqui a palavra é um equilíbrio. E esse equilíbrio é muito difícil de estabelecer.
Depois há outro equilíbrio que é difícil e só mais tarde é que nos apercebemos. Eu acho que a vida social, a intensidade da vida em grupo, limita. Porque desenvolvemos uma dependência muito grande daquilo que o outro sente e acha. Uma vida em grupo muito intensa tem vários problemas, por causa do peer pressure, a pressão para a convergência, a pressão para a aceitação, a pressão para a conformidade… Isto não tem a ver com o Escutismo, tem a ver com a sociedade portuguesa, onde o Escutismo se integra. E isto é na perspetiva comparada com a sociedade anglo-saxónica. Na ótica comparada, a minha vida americana, sob o ponto de vista da vida social, é o oposto da vida que eu tinha em Portugal. Portugal é um manancial de afetos que nos envolve. A experiência anglo-saxónica é um deserto de afetos. Na experiência portuguesa, as relações são mediadas por afetos e por isso temos os problemas da corrupção e da falta de transparência, mas há coisas boas. Eu não vi em Portugal o tipo de miséria que vi nos Estados Unidos durante a crise de 2007-2010. Os laços sociais em Portugal e noutros países de matriz latino-cristã são tão fortes que amparam nesses momentos extremos de dificuldades, mas depois no dia-a-dia têm o potencial de limitar a liberdade individual, de condicionar a afirmação da pessoa individual na sua potência máxima.
FL: E o All4Integrity foi concebido exatamente devido a esta corrupção. Em que consiste o projeto?
ACA: A All4Integrity integra tudo o que tem a ver com o Escutismo. Tem tudo a ver com esta vontade de querer fazer a diferença, perante um problema que se apresentava e que afeta o património coletivo. Havia um vácuo na sociedade portuguesa de uma ONG que trabalhasse o problema da corrupção pela positiva, por mais paradoxal que tal pareça ser.
Remontamos a 2011. A Troika tinha acabado de entrar em Portugal, ia cá estar até 2014, e tínhamos 3 anos para repensar as nossas instituições porque a certa altura iríamos recuperar de novo a nossa soberania nacional. E eu embarquei num projeto de investigação que resultou num livro, em 2019, que se chama “A reforma do sistema parlamentar em Portugal: Análises e instrumentos para um diálogo multipartidário”. E é nesse livro, nesse processo de investigação, que eu entro em contato mais próximo com o problema da falta de transparência entre o setor público e o setor privado. Fiz um survey à diáspora portuguesa em 2013, mais de 1.200 pessoas participaram. Esse survey de 2013 tinha como objetivo captar as preocupações dos portugueses ao nível da organização das funções do Estado, o financiamento dos partidos, a lei eleitoral, o regimento da Assembleia da República, o funcionamento dos juízes, etc. O livro sai em 2019 e é nesse processo que eu me deparo com as gritantes lacunas ao nível da questão da transparência da relação pública ao privado. E eu tinha que fazer qualquer coisa. As fragilidades institucionais eram tantas, que eu tinha que fazer qualquer coisa, mas não sabia exatamente o quê. Foi assim que em outubro de 2020 fiz uma coisa que nunca tinha feito e nunca mais voltei a fazer, e fui para as redes sociais Facebook e Instagram. Fiz um apelo no dia 5 de outubro a professores para que mobilizassem os seus alunos em torno do dia 9 de dezembro de 2020, o Dia Internacional Contra a Corrupção definido pelas Nações Unidas. Fiz call to action a partir de vários sítios diferentes de Nova Iorque. Comecei downtown junto ao Fearless Girl, em frente à Bolsa de Valores. Uma outra altura fui para as Nações Unidas. Numa outra intervenção fui para o Imagine do John Lennon, no Central Park. Outro dia fui para a estátua de Gandhi na Union Square. No próprio dia 9 de dezembro, fiz um percurso a pé durante o dia todo, parando para fazer depoimentos. Começaram a mobilizar-se professores, a responder positivamente ao call to action, e a perguntar como podiam mobilizar os alunos. Então, a Prof. Ângela, que é atualmente a vice-presidente da All4Integrity, começou a partilhar alguns links e vídeos para ajudar os professores e de repente começou-se a criar ali uma pequena biblioteca digital que professores de todo o país podiam utilizar.
Em dezembro de 2020 fui a Portugal e comecei a ser convidado para ir falar às escolas. Um dos maiores desafios da minha vida foi falar sobre corrupção a alunos do ensino preparatório. Quer dizer, como é que se fala de corrupção a crianças, que não sabem o que é que quer dizer suborno nem o que é um Caso Marquês? Eu pedia que eles imaginassem que um dos colegas deles recebia explicações individuais do professor de História da turma. Amanhã ia haver teste de História e coincidia que nessa noite o aluno ia ter explicação com o professor que ia dar o teste. Gerou-se logo descontentamento. «Ah, não pode ser!» «Esse aluno tem uma explicação adicional com o professor no dia anterior ao teste e nós não temos!» Quer dizer, o professor tinha sido contratado pelos pais para dar explicações regularmente. Tudo aparentemente normal, mas tudo errado. E os alunos aperceberam-se dos conflitos de interesse. Pudemos falar de transparência e ética sem nunca ter falado propriamente de corrupção. E gostava muito que se falasse mais aberta e explicitamente destes temas nas diferentes fases etárias do CNE.
As coisas chegaram a tal proporção que a certa altura já tínhamos cerca de 15 colaboradores envolvidos por todo o país e em setembro de 2021 constituímos finalmente a All4Integrity em Portugal, com duas atividades. Uma delas foi aquilo que se tornou num programa escolar internacional de literacia anticorrupção. Ganhou o Prémio das Nações Unidas em 2023. Mais de 10 mil alunos participaram e está atualmente em países distribuídos por quatro continentes, do Brasil à China. Começou no ensino secundário, depois tivemos professores do preparatório a pedir para aderirem, além de escolas profissionais. Tivemos também professores a pedir formação para eles próprios. Nós temos agora vários protocolos, inclusive com o MENAC (Mecanismo Nacional Anticorrupção), com instituições brasileiras e, em breve, com franceses, para dar formação a professores nestas áreas, para que eles também estejam mais preparados para dar formação aos seus alunos.
A segunda atividade que deu corpo à associação no arranque foi o Prémio Tágides. O Prémio Tágides é uma iniciativa anual em que a sociedade civil nomeia quem mais a inspira no combate à corrupção. Há um júri muito diversificado que analisa os nomeados e define quem é que vai à cerimónia final em dezembro, onde se anunciam os vencedores.
Tudo isto é sempre na lógica da mobilização para a ação. Não se descuida o estudo das matérias, mas sempre com o objetivo de informar a ação. Atualmente, existem mais três iniciativas. O Integridade+ é um programa semanal que nós produzimos gratuitamente para as rádios locais em Portugal, que também existe em podcast. O Tech4Integrity é o quarto pilar da nossa associação e mobiliza computer scientists e data scientists para criar novas ferramentas de apoio a certos grupos profissionais, académicos, investigadores, autoridades judiciárias, etc, para melhor investigarem e estudarem estes temas. Há um problema escandaloso da falta de integração de dados para a transparência. E depois temos depois a Academia All4Integrity, que tem como vocação trabalhar com empresas e organismos públicos a ideia da ética que vai além da complacência. O que as organizações podem fazer na área da transparência e integridade que não seja apenas cumprir o mínimo que a lei exige. De que forma é que isso pode beneficiar a reputação da marca? De que forma é que isso pode mitigar riscos? Por exemplo, há muitos “pés na argola” que empresas e políticos cometem, mesmo não infringindo a lei. Não basta cumprir a lei para se criar a transparência e os graus de confiança específica que é preciso. A Academia é a única das cinco valências que vende serviços, tudo o resto são programas em que nós conseguimos financiamento por parceiros.
Já havia instituições dedicadas a denunciar o problema da corrupção. A Transparência Internacional, a Frente Cívica e o Observatório da Fraude são instituições de referência e essenciais, mas cada uma com as suas estratégias de intervenção diferenciadas. Umas mais na lógica antissistema, outras mais na lógica de trabalhar soluções dentro do sistema, umas mais na lógica de investigar os temas e escrever sobre eles, outras mais na lógica de pegar nessa investigação e desenvolver programas concretos. A All4Integrity desenvolveu a sua identidade própria, que é trabalhar com os atores reais novas soluções e não apenas denunciar os problemas que existem. Isto tem tudo a ver com os escuteiros: fazer uma coisa que parece impossível, a dedicação à comunidade mesmo vivendo tão longe, o serviço público, fazer a diferença e deixar o mundo melhor do que o encontrámos.
FL: Sendo o Escutismo um movimento apolítico e apartidário, podemos trabalhar a política com os nossos jovens?
ACA: O Escutismo é dúbio nesta matéria, porque apela à intervenção cívica, mas é apolítico. Qual é o problema disto? A All4Integrity também apela à intervenção cívica e é apartidária. Quando vamos votar, podemos pôr o voto em quem quisermos. Mas a lógica é trabalhar o problema pela solução. Isso, naturalmente, tem que exigir negociação. Ainda por cima, quando se trabalha com atores do sistema, tem que haver muita negociação. Uma coisa é uma organização que trabalha com atores do sistema e que tem que interagir com eles e negociar com eles, e outra coisa é estar no “terceiro anel” a dizer que tudo é mau. O problema é que se confunde o apartidarismo com a não-relação com políticos. E é aqui que eu acho que o CNE tem um problema. Eu estou longe há muito tempo, percorri os corredores das instituições nacionais do CNE com muita proximidade entre 2000 e 2005. Há 20 anos que não estou no meio dos corredores, mas já estive. E há uma “alergia”, um tabu ao tema político, que não tinha que existir. Os Caminheiros e Dirigentes do CNE têm de ser muito mais audíveis e atuantes nos círculos políticos…
Há uma relação que o Escutismo tem que ter com políticos. É claro que o chefe de agrupamento, ou o chefe regional, ou o chefe nacional, terá certamente encontros e reuniões com o Presidente da Câmara, o Ministério da Juventude… Mas não há esta assunção explícita, assumida e metodologicamente coerente do lobbying dos escuteiros adultos junto de atores políticos e dos temas politicamente fraturantes. Nesta lógica de intervenção cívica, o CNE deve ser um lobista junto dos atores da educação ao nível local. O CNE promove valores. E esses valores, esta linguagem de ciência política, esta linguagem de participação cívica – partidos, democracia, instituições – faz sentido ser falada no CNE como um lobista. O CNE perde eficácia quando, ao nível local, está tudo bem interagir fortemente com o Presidente da Junta, mas não a nível nacional. A minha experiência de agrupamento é uma experiência riquíssima e intimíssima de relação com a autoridade eclesiástica e a autoridade administrativa, local, ainda que, curiosamente, tradicionalmente PCP/CDU.
Confunde-se o apartidarismo, que eu acho que se deve manter, com o não-lobismo. Eu acho que o CNE deve assumir mais. Sejam quais forem os valores que o CNE quer desenvolver ou defender, no passado, no presente ou no futuro, nesta matéria de ação cívica, temos que mostrar ao nosso Movimento, aos nossos exploradores, pioneiros e caminheiros, que São Bento não existe num abstrato olímpico. Os políticos são seres humanos como nós, que têm de tomar decisões, e ajudamo-los se estivermos mais próximos deles.
O CNE não desempenha um papel que podia desempenhar, porque não só tem autoridade, mas também tem as ferramentas e relevância. É a maior organização juvenil do país e é uma escola brutal de intervenção cívica ao nível local. Mas eu acho que a proposta metodológica do CNE não acompanha o desenvolvimento da pessoa. Quer dizer, ao nível dos lobitos, exploradores e pioneiros, nós somos convidados, por todo tipo de razões, a uma forte interação com as autoridades administrativas locais. Mas quando chegamos a Caminheiro, se calhar já não é só com o Presidente da Junta que queremos falar. Estas gerações mais irreverentes e reivindicativas viveram sempre em crise e têm um nível de atitude em relação às instituições políticas completamente diferente das anteriores.
Acho que o CNE tem que se adaptar até no serviço público que presta a um país cujas instituições estão altamente fragilizadas. O CNE podia ser um lobista. Pela transparência, pela gestão urbanística, por questões de descarbonização da atmosfera. Eu não estou a dizer qual é a agenda específica que deve ser desenvolvida, isso cabe a cada agrupamento ou a cada região. Mas há claramente um artigo da lei invisível, que é o alinhamento obediente à Igreja. E eu percebo que estatutariamente o CNE seja filiado à Igreja, mas há aqui muito espaço para um equilíbrio entre essa obediência, sem haver uma demissão tão profunda deste papel de lobista junto do ator político mais afincadamente.
Por exemplo, eu não me lembro de ver um chefe nacional com o primeiro-ministro. Não me lembro de um chefe nacional ou de um chefe regional numa fotografia ou numa conferência a debater temas. Há programas concretos para pioneiros e caminheiros que se podiam desenvolver se um futuro chefe nacional quisesse assumir mais este papel importante junto aos atores políticos.
Entrevista: Catarina Valada.
Fotos: cedidas por André Corrêa d’Almeida.
Após o sucesso da edição passada, o Centro Escutista de Kandersteg organizou mais uma edição da Digital Work Party, de 24 a 30 de março, com presença portuguesa!
O KISC (Kandersteg International Scout Centre) anuncia o regresso do JOTA-JOTI, uma experiência que permitirá aos escuteiros de todo o mundo viver o espírito deste centro escutista suíço sem saírem de casa. Já te podes inscrever!
Nos dias 9 a 13 de Abril, o CNE marcou presença no AGORA 2025 na cidade de Tirana, na Albânia.
A Conferência Internacional Católica do Escutismo (CICE) convida todos a partilharem mensagens de esperança, paz ou oração em memória do Papa Francisco, que faleceu na passada segunda-feira.
© 2022 escutismo.pt Desenvolvido por Brand by Difference