Considerado um “incómodo” pelas autoridades estatais, o Movimento Escutista era meramente tolerado durante o Estado Novo. Apesar das tentativas de extinção do Movimento pelo Ministério da Educação Nacional, após a criação da Mocidade Portuguesa, o apoio da Igreja e de algumas elites militares e políticas de Lisboa protegeu o CNE. O escutismo, com a sua capacidade de mobilização, valores de solidariedade e fraternidade internacional, contrastava com a visão do regime e era por isso visto com desconfiança.
Mesmo dentro do Movimento, crescia um descontentamento em torno do regime, especialmente devido à Guerra Colonial, que vitimava muitos dos seus associados. A Vigília da Capela do Rato de 1972, onde membros da Igreja e alguns escuteiros protestaram contra a guerra e a ditadura, levou a que a PIDE/DGS passasse a vigiar o CNE de perto, culminando na perseguição e prisão de alguns escuteiros.
Ainda em 1962, a revisão dos estatutos do CNE, que incluía a instituição de um processo eleitoral para o Chefe Nacional, foi aprovada pelo Conselho Nacional, mas acabou por ser censurada pelo Estado Novo. Na década que se seguiu, essa revisão estatutária censurada inspirou reflexões sobre a democratização e modernização do Movimento, que culminaram em maio de 1974, quando, em Lisboa, foram realizadas as primeiras eleições do CNE para eleger a Junta Regional, seguindo o modelo proposto em 1962.
A Revolução dos Cravos, a 25 de abril de 1974, trouxe às instituições do nosso país o impulso transformador que estas precisavam para se modernizar. No CNE, o processo revolucionário trouxe, numa primeira instância, a incerteza de que o Movimento sobreviveria, pela sua ligação à Igreja Católica e pela confusão que se fazia entre escutismo e Mocidade Portuguesa. Existem relatos de desacatos entre civis e escuteiros, os quais provocaram impedimentos nas atividades do CNE, como foi noticiado no número da Flor de Lis de junho de 1974, onde se lê um artigo sobre uma atividade de corrida de jangadas adiada em Coimbra devido à “agitação do movimento político”. Pela “confusão que muita gente fazia e faz, entre Escutismo e Mocidade Portuguesa”, temia-se que “alguém se lembrasse de levantar umas “bocas” e provocar o desencadeamento de agressões em massa”. Houveram também casos de escuteiros envolvidos em momentos tensos do processo revolucionário, como é o caso de Mário Branco, que recorda os tempos que passou acampado na Quinta do Álamo e da Princesa, no concelho do Seixal, com o 414 Amora, para evitar que estas fossem ocupados por forças políticas.
A Junta Central ficou demissionária no Conselho Nacional de 7 de julho de 1974, em Fátima, porque se considerou que era esse o passo a tomar no processo de democratização do Movimento. Nomeou-se uma Comissão Executiva provisória, encarregue de consultar todos os dirigentes sobre as alterações a fazer aos estatutos, elaborar o processo eleitoral e promover eleições, garantindo que se mantenha o CNE como obra da Igreja, na prática do método escutista e ao serviço dos jovens. Sobre este Conselho Nacional correu muita tinta na Flor de Lis que, deixando de temer o Lápis Azul da censura, abriu as suas páginas ao contributo de todos os que lá quisessem escrever. Sem medos, João Teixeira, à data Caminheiro, escreveu o artigo “Como eu vi o Conselho Nacional 74”, condenando fervorosamente quem se posicionava em defesa dos seus interesses pessoais, em vez de colocar o bem dos escuteiros em primeiro lugar. Mais adiante nesse mesmo número, Victor Touricas também procurou reportar os acontecimentos do Conselho em Fátima e denunciou a falta de foco nos problemas reais dos jovens, destacando os comportamentos questionáveis dos dirigentes. Em resposta, Tarcílio Rodrigues, autor do artigo “A Terceira Visão” de setembro de 1974, apresentou-se como o principal visado do texto de Touricas e contestou as acusações, alegando uma interpretação tendenciosa e apresentando uma ata do Conselho que ele próprio escrevera numa tentativa de estabelecer os factos.
A polémica continuou em novembro de 1974 com um artigo de José Santos criticando a abordagem de Touricas como demagógica e divisionista. Nesse mesmo artigo, em nota de rodapé, Henrique Alegria, Chefe de Redação da Flor de Lis, defendeu a publicação de diferentes pontos de vista, mas relembrando a importância dos interesses do Movimento acima dos interesses pessoais.
Firme na abertura ao diálogo e à liberdade de opinião, a Flor de Lis passou a incluir peças também de foro político. Foi publicado no número de setembro de 1974 o artigo “O CNE e a actuação política”, de J. Luz Carmo, que expõe “a reacção ao progresso, o medo da mudança” nas estruturas pedagógicas e religiosas do CNE da época e advoga pela educação política dos jovens no escutismo. Já em janeiro de 1975, Ivan Myhu assinou o artigo “Escutismo Cidadela de Revolta?”, no qual faz um impetuoso apelo à mudança, à participação política ativa e à ação transformadora dos escuteiros.
Caminhava-se a toda a velocidade para a modernização do Movimento. Os novos Estatutos de 1975 do CNE marcaram uma transição para a coeducação, expressa na identificação do Movimento como uma “associação de juventude, destinada à formação integral dos jovens”, indicando uma abertura para a participação feminina.
Embora patrulhas femininas já existissem em vários agrupamentos, não eram comuns nem regulamentadas, muitas vezes limitadas a atividades paroquiais e compostas por familiares de escuteiros. A coeducação foi oficializada em junho de 1976, com a criação das “patrulhas de estudo”, embora tenha enfrentado resistência e hesitação de alguns dirigentes, deixando a decisão de implementação para cada Junta Regional.
Hoje, o CNE continua de boa saúde, com mais de 70 mil associados, e em constante renovação. Os valores de Abril não se deixaram no processo revolucionário e perduram no nosso Movimento, e são exemplos desta capacidade transformadora a mais recente Tomada de Posição sobre a Afetividade e Sexualidade e o projeto Entrelinhas. O cinquentenário da Revolução dos Cravos lembra-nos do vasto caminho que percorremos e dos desafios que ainda iremos superar, para que o projeto educativo continue a demonstrar o seu potencial inovador, conservando sempre a essência do que é ser escuteiro.