Como foi o teu percurso escutista?
Fui escuteiro em Benfica, durante 22 anos, entre 1985 e 2007. Lobito, Explorador, Pioneiro, Caminheiro, Dirigente, Chefe de Exploradores, de Pioneiros, de Caminheiros, e Chefe de Agrupamento.
Fui Chefe Adjunto do contingente português ao EUROJAM em Londres, em 2004/2005. Não me recordo da data, antes do mundial do centenário, um jamboree de teste para o jamboree mundial, no mesmo espaço.
Na minha vida tive envolvimento com várias equipas de trabalho, e saí do Escutismo feliz com o Escutismo. O que é uma coisa que eu acho que devíamos ser muito mais intencionais quando dizemos isto e devíamos ter mais gente a dizer isto. Porque depois também vejo muita gente nas redes sociais, sobretudo nas redes sociais, vejo amigos meus zangados, eu tenho as minhas teorias porque é que eles estão assim zangados, acho que há um tempo para tudo…
Eu sou filho de um chefe de escuteiros, o meu pai foi chefe de escuteiros durante muitos anos, continua ligado ao Escutismo, e a minha mãe foi para chefe de escuteiros depois de eu ser escuteiro. A minha mãe deixou os filhos irem para os escuteiros e depois foi atrás. No meu percurso escutista tive a oportunidade de ter vários cargos na patrulha e nas equipas, com reflexo na minha vida profissional. Para mim, a coisa mais natural a sair de uma reunião é ter os próximos passos dessa reunião, um registo de quem esteve presente para garantir que estão todos, é ter uma visão de longo prazo ou ter um projeto de longo prazo, ou intermédios que chegam aí, e os escuteiros ensinaram-me a lidar com equipas e a respeitar as minhas funções.
Notas que, para a tua vida profissional, o Escutismo te deu aquelas ferramentas de que tu agora estavas a falar, que de facto são mesmo importantes?
Superimportantes. O Escutismo é uma escola de valores, e isso é a primeira coisa. Quando tu entras num ambiente de trabalho e o teu quadro de valores implica honra, lealdade, no sentido de utilidade, a amizade… Acho muito engraçado, fala-se em sustentabilidade, e fala-se muito em ecologia, e parece que está muito na moda, não é? Eu não conheço outro mundo em que não se fale desse assunto, porque estava nesse quadro de valores. Eu acho que esse quadro de valores é uma coisa que levas para a tua vida profissional. E o que é engraçado é que levas isso, levas um certo hábito de ter uma função dentro de uma equipa, ou dentro de uma patrulha. Quanto estás dentro de uma equipa de trabalho é superclaro para ti que tu és parte de um todo e tens de ter uma contribuição saudável e positiva para esse todo, certo? Até o princípio de aceitar o erro! Eu tropecei em espias de tenda, como todos… Com os iglos, as coisas ficaram mais resolvidas, mas para quem acampou em canadianas e com as espias bem esticadas, não conheço ninguém que nunca tenha caído! E então saber que tu cais e te levantas, até em pequenas coisas que implicam risco, por vezes temos medo de fazer algumas coisas no trabalho… Eu não conheço mais nenhuma organização que coloque instrumentos cortantes nas mãos de crianças, tão cedo, como no Escutismo. Se eu te dissesse em 2022, fora do contexto do Escutismo, que tu pões um machado na mão de uma criança – tipicamente não colocamos nas mãos dos Lobitos –, mas que tu estás confortável com uma criança de 12 anos, a dar-lhe confiança e autonomia, com regras e acompanhamento… Então eu, no meu dia a dia profissional, tenho de tropeçar e me levantar, tenho de correr riscos, tenho de trabalhar com pessoas sabendo que tenho uma função num grupo maior… E estas coisas todas eu comecei a fazer antes de entrar numa carreira. Então, quando tu entras numa carreira, estas coisas notam-se.
Eu estou a viver no Brasil, trabalho numa empresa que se chama META, que é a proprietária no Facebook, Instagram e Whatsapp, e trabalho na América Latina. No meu trabalho do dia a dia tenho de falar com pessoas, não é? Eu e um colega meu do México descobrimos os dois com muita facilidade que éramos escuteiros. Só a trabalhar, sem nenhuma referência específica, até que alguém fez uma piada de «isto bem resolvido era à volta de uma fogueira», ao que ele começa a brincar e diz «OK, eu vou fazer a mochila e vamos», e isto vem do contexto profissional, até que começámos a fazer o crosscheck, «foste escuteiro de certeza absoluta» e eu «claro que fui», com a diferença de que eu era escuteiro em Portugal e ele era escuteiro nas Ilhas Canárias. Eu era CNE em Portugal e ele era da ASDE – Scouts de España. Ele agora é um escuteiro de Espanha que trabalha no México e eu sou um escuteiro de Portugal que trabalha no Brasil, mas isto traz-me para outro ponto: não só este quadro de valores e este sentido do todo, há também uma coisa muito interessante: eu muitas vezes vi desvalorizar a importância que tem a dimensão internacional do Escutismo, vivida nas várias vertentes, e, com toda a honestidade, as experiências internacionais que tive com os escuteiros prepararam-me para a minha carreira internacional. A primeira vez que estive sentado com alguém do Senegal e alguém da Finlândia não foi na minha carreira profissional, nem na minha carreira internacional de profissional, foi no Escutismo. Foi na Holanda em 95, onde a improbabilidade de estares com escuteiros japoneses à direita, com os finlandeses misturados com os senegaleses – porque no Jamboree da Holanda era obrigatório ter grupos de 40, independentemente de como tu fizesses os encaixes. Então a gente saiu de Portugal muito preparados para ter grupos de 40. Então os escuteiros da Finlândia e do Senegal estavam curtos e tinhas aqui esta ideia de que há denominadores comuns importantes, que se sobrepõem às culturas, e a oportunidade de ver essas culturas em comunidade, eu vi nos escuteiros. Então, quando entrei no mundo na minha vida profissional, eu estava preparado.
Foi fácil a integração?
Eu acho que, de uma maneira geral, algumas coisas são feitas de forma inconsciente, mas claro que faço este exercício de retrospecção, porque depois de ter sido escuteiro fui chefe de escuteiros, é normal fazer algumas reflexões sobre estes temas. Mas para mim é evidente o papel que os escuteiros tiveram na minha vida… Depois tive aqui um momento de vara bifurcada, entre esquerda ou direita, não foi entre o bem ou o mal, mas tive de escolher uma opção: Quero dividir a minha energia ou quero concentrar a minha energia?
Eu estava com alguma ambição profissional e essa ambição começou a incompatibilizar-se com a sexta à noite, com as férias, ou seja, com aquilo que eu fiz durante 11 anos enquanto chefe de escuteiros, já não conseguia dar continuidade. Tenho super-respeito por quem continua a ser chefe de escuteiros, mas eu não conseguia. Então trouxe equilíbrio à minha vida. Mas claro que teve impacto, claro que o trabalho que eu faço todos os dias na Meta é inspirado, guiado e preparado pelos anos que eu tive no Escutismo. E até te digo mais: acho que, para as partes não técnicas do trabalho, o Escutismo me preparou mais do que qualquer escola. Entre o Escutismo e a família, que na minha casa se confunde muito porque são todos escuteiros, eu fui preparado para trabalhar em empresas e interagir com outros seres humanos todos os dias. Então é mesmo verdade, e não sei se é o teu objetivo, como é que pessoas que têm carreiras, eu não tenho a mesma visão, mas que aos olhos de outros são de sucesso, são de referência, porque vão para fora, e quando vão para fora têm posições seniores e conseguem singrar… Como é que eles chegam lá? O Escutismo é uma alavanca disso.
Quando és recrutado para alguma empresa, alguma vez disseste que tinhas sido escuteiro, que tinhas sido voluntário? Notaste que isso influenciou a decisão do recrutador?
É assim [risos], no meu primeiro emprego full time, em marketing, fui contratado pelo pai de uma escuteira de Benfica. Eu tive de dizer, ele fez de olheiro no agrupamento, foi recrutar ao agrupamento! Depende de quem está a recrutar, eu não entrei em todos os trabalhos que me candidatei, houve muitas entrevistas que deram certos e outras entrevistas que não, em muitas delas eu referi os escuteiros, certo? Quando perguntam, quando estás nos 20 e poucos anos, que experiência de liderança é que tu tens e estiveste num movimento como o Escutismo, ou estiveste em algum desporto ou associação com essa dinâmica, mas os escuteiros trazem uma grande vantagem se o recrutador foi escuteiro. Agora se me perguntares se eu quando estava a recrutar e alguém levantava esse ponto e fazia a diferença: absolutamente. Sim, e sim, não numa lógica sectorial de proteção dos meus, mais na questão de estar preparado, de ser responsável….
As chamadas soft skills…
Sim, é isso. O Escutismo é uma escola muito séria de soft skills. Claro que as hards skills também me dão jeito, eu estou a viver numa casa que tem aqui uma parte ajardinada e os meus filhos ficaram muito impressionados porque o pai pega numa corda, faz uns nós e ata umas coisas e serra…. Também tive essas hard skills, que na minha vida também me são muito úteis, mas as softs skills vêm muito aceleradas quando te comparas com outras pessoas. E também a capacidade de aceitar, porque os escuteiros têm uma coisa interessante: tu não escolhes quem vem para a tua patrulha, o que faz com que seja diferente do recreio da escola, em que a gente escolhe – uma coisa maldosa, como os dois melhores que jogam futebol na turma, são os que escolhem as equipas. E eu nos escuteiros nunca escolhi a minha patrulha, a minha equipa, então estou mais preparado para aceitar o outro com as diferenças dele. E isso faz uma grande diferença! Uma pessoa que não teve essa experiência, que está habituado a estar com os amigos do bairro, com os amigos da família, e ter de aceitar que existem dois que estão de outra maneira. Por exemplo, aquela situação em que dois querem ser secretários numa patrulha, e aquilo tem de se organizar… Mesmo os aspetos saudáveis por alguma competição na empresa, as pessoas que são dos escuteiros estão mais preparadas para isso. Estão mais preparados para ganhar, perder, por exemplo, agora nas empresas fazem-se muitas vezes rodas para partilhar ideias… Para os escuteiros, sentar numa roda é normal! Acho interessante que quando querem fazer atividades de teambuilding nas empresas… Eu até aqui há alguns anos trabalhava numa consultora e fizeram uma atividade em que as coisas que eu fiz lá foram coisas que eu fiz nos escuteiros… Era tudo gincanas! E pronto, não tenho dúvidas absolutamente nenhumas de que sem Escutismo eu não estava onde estou, talvez se não tivesse vivido o Escutismo, não tivesse feito carreira internacional; se não tivesse ido a jamborees, não sabia trabalhar da maneira que trabalho hoje; e se me perguntas se está presente no meu dia a dia, está.
Eu tenho alguns livros em casa, e agora até deixei de comprar porque aqui a minha esposa não me deixa comprar mais papel, porque tenho aquela coisa do kindle e posso comprar livros por ali e ler por ali… Mas vou tendo alguns livros físicos, o único livro que tinha de leitura é o Escutismo para Rapazes, vai comigo para todo o lado. Fui viver para os Estados Unidos e levei o livro, vim viver para aqui e trouxe o livro comigo. De outros livros já me livrei, mas aquele fica sempre.
Mas porquê, perguntas tu? Porque hoje em dia o Escutismo para Rapazes é mais histórico que prático, uma criança de oito anos pega no livro e a linguagem é complexa e não cola a uma realidade fácil de entender para um miúdo em 2022. Mas eu, de vez em quando, abro o livro e vou lá dar uma espreitadela… É livro de consulta.