«Se a nossa mão não for visível, é sinal que as coisas estão a correr bem»

Com um longo percurso escutista, com passagem por todas as secções e várias funções a níveis regionais, nacionais e internacionais, Rui António assume neste próximo triénio a Secretaria Nacional Pedagógica. Fomos conhecer quais serão os desafios para a sua Secretaria.

Flor de Lis – Como é que surgiu o convite para seres Secretário Nacional Pedagógico?

 

Rui António – Isso é sempre uma pergunta para um milhão de euros! Do que eu percebo, surgiu na sequência do trabalho desenvolvido no ACANAC 2022, na Iª Secção, e se calhar um pouco antes disso na equipa que foi formada no momento da pandemia, para sabermos como é que poderíamos reagir ao confinamento. Aí tive esse contacto mais próximo com a equipa nacional. Já tinha algum contacto com a equipa pedagógica, por inerência das funções que tinha como secretário regional pedagógico, desde 2017. Pude acompanhar a equipa da Raquel, do qual o Paulo fazia parte, entre outros, que era um trabalho que eu considerava bastante interessante e motivante, todo o trabalho que eles desenvolveram, como alguma revisão ou reformulação do sistema de progresso, que eu também acompanhei, tão perto quanto consegui. Vem aqui deste contexto, desta proximidade.

 

Flor de Lis – Foi fácil dizer que sim? 

 

Rui António – Não, de todo. A primeira resposta, depois de pensar um bocadinho, foi de que não seria a pessoa mais indicada. Não é que não encaixasse, mas não me sentia propriamente capacitado para isso. Entre pesar as questões pessoais, profissionais, com a questão de ter que “abandonar” o agrupamento, são mais de 30 anos de ligação, isso pesou ali um bocadinho. A resposta a estas perguntas dificultaram um pouco a tomada da minha decisão.

 

Flor de Lis – Agora que aceitaste o desafio e já és parte integrante da equipa, acreditas que tens muito a acrescentar ao trabalho pedagógico do CNE para o próximo triénio?

 

Rui António – Eu vejo esta função ou esta equipa como um trabalho de continuidade. Olho para trás e vejo todo o trabalho que já foi feito ou que me foi deixado já feito, desafios que já foram começados, enfrentados, na minha opinião com algum grau de sucesso. Portanto, não venho aqui com uma perspetiva de reformular, revolucionar ou mudar tudo. Embora perceba que se calhar possa haver na Associação quem gostasse de ver isso a acontecer, mas não venho com essa mentalidade. Até porque efetivamente a equipa mudou um pouco, mas não mudou assim tanto e as ideias mantêm-se. Como referi há pouco, eu acompanhei muito o trabalho nos últimos 5 ou 6 anos. Entendo, claro, que existam desafios na aplicação do método escutista, tal como algumas das Maravilhas nós ainda não as estamos a aplicar a 100%, se calhar podemos continuar a falar do Painel de Progresso, podemos falar do Aprender Fazendo, do Método Projeto. Coisas que na minha experiência, que na minha experiência, que ainda não é muita, de contacto com diferentes realidades, há lacunas que vamos encontrando na Associação, nos diversos níveis. Seja a nível daquilo que as pessoas se vão queixando, que não se consegue fazer, que ainda não está bem… Precisamos de trabalhar. Portanto, sem dúvida que a questão do Método, que a mim me diz muito, é para mim aquilo que é a nossa marca, que nos distingue do trabalho de outras associações. Hoje em dia, por exemplo, tu vais a uma escola de basquetebol e trabalham o trabalho em equipa, a autonomia e a responsabilidade, vais a uma escola de música e trabalham a criatividade, até o espírito de equipa, trabalham a responsabilidade. Vês que aquilo que era se calhar uma oferta do escutismo, hoje em dia já existem muitas associações e escolas que trabalham com os miúdos aqueles mesmos valores e contribuir para que esses valores sejam assumidos, pelas nossas crianças, pelos nossos jovens. Se calhar ainda temos valores que nos distinguem dos demais e é na forma que trabalhamos que ainda fazemos a diferença. Aqui estamos obviamente a falar do acampamento, da vida em campo, embora cada vez mais existam escolas que se dedicam a levar os miúdos a acampar e a fazerem algum tipo de atividades que nós antes olhávamos e só nós é que fazíamos. Portanto, o método sem dúvida continua a ser um desafio, para garantir que todos os milhares de adultos, o aplicamos de forma mais ou menos uniforme. Obviamente que existem diferentes abordagens, diferenças de realidades locais, que se calhar condicionam a aplicação deste ou daquele pormenor, mas aquela linha condutora deve ser o mais igual ou uniforme possível.  Outra área que tem tido um enfoque bastante grande nos últimos anos por esta equipa, o envolvimento jovem, não apenas na questão dos Caminheiros, do Desafio, de virar o Caminheiro para fora, virar o movimento para fora. Creio que continua a ser um desafio. Percebemos que já no tempo de B-P isto era uma coisa virada para fora, no serviço aos outros, muito para além da boa-ação, que temos interiorizado muito nessa perspetiva. Tem que ser um movimento virado para fora, só faz sentido quando está ao serviço dos outros, e encarar isto na perspetiva, como eu dizia há pouco, do Caminheirismo, no Desafio que é exatamente isso que se pretende fazer, virar o Caminheiro para a Comunidade, muito aqui alinhado com a 8ª Maravilha do Método, mas depois também trabalharmos muito cá dentro, o Ask the Boy, é efetiva e é uma realidade. De que forma é que nós envolvemos os nossos miúdos no desenvolvimento da ação do nosso Agrupamento. O Encontro Nacional de Guias importante nesse sentido, mas aquilo que sentimos é que isto funciona na estrutura, no Núcleo acontece, na Região acontece, mas depois há aqui duas coisas que ainda precisam de ser trabalhadas, por um lado o Encontro Nacional de Guias, o que sai de lá, estas reflexões, que este trabalho com os miúdos tenha algum impacto para a Associação. O caso de Cenáculo, até que ponto efetivamente o Cenáculo tem essa consequência, que dali saem ideias que depois são aplicadas na Associação. Isso é algo em que acredito piamente que deva ser assim, deva ter essa consequência. Voltando ao Encontro Nacional de Guias, não só no topo haja depois um reflexo para a Associação mas que também a nível Regional, Núcleo, Local, se isto efetivamente acontece, ou seja, se a nível local os nossos miúdos são efetivamente ouvidos, no Conselho de Guias, à sua escala, se são efetivamente ouvidos ou se é só uma coisa que só serve para mostrarmos e depois efetivamente a coisa cá em baixo não acontece. É importante que no Agrupamento isto aconteça e que haja reflexo destes projetos. 

Método, Desafios, Envolvimento Jovem… Embora mais uma vez diga que já há muito trabalho consolidado dos mandatos anteriores. Outro desafio que iremos tentar endereçar a este mandato é o tema do efetivo e falta de efetivo na Associação. Em particular na III e IV secção. 





Flor de Lis – Mas no caso da I e II secção existiu uma evolução no efetivo, certo?

 

Rui António – Sim, aí não temos problemas. O que temos verificado é que, tendo pouca influência a pandemia, porque já vem de trás, percebemos que há uma tendência decrescente na III e IV secção. E se a IV secção parece apresentar aqui uma inversão da tendência, na III isso ainda não acontece.

 

Flor de Lis – Conseguem identificar qual é que será o motivo? Será por exemplo o envolvimento em outras atividades fora do escutismo?

 

Rui António – Esse é o nosso ponto de partida. Parte do desafio está exatamente aí. Esse estudo ainda não foi feito, será esse leque de alternativas em que se calhar o escutismo não está incluído não será suficiente para eles. Ainda não começámos essa investigação, estamos agora a começar esse estudo para depois de identificarmos as causas sabermos o que é que podemos fazer para inverter esta tendência. Será que precisamos de um novo projeto/modelo para a III secção, para a IV? Será que é mesmo só uma questão de ambiente e de envolvência e isto é algo natural que não conseguimos combater? Queremos acreditar que não. Mesmo que seja natural poderá existir algo que possamos fazer para numa primeira instância conseguirmos “estancar” esta tendência e revertê-la. 

 

Flor de Lis – Neste ano de Centenário o que é que o Departamento Nacional Pedagógico tem definido para conseguirmos assinalar esta data tão importante?

 

Rui António – Em relação ao Centenário estamos a desenvolver iniciativas especificamente nossas e direcionadas para as nossas crianças e jovens, como na Jornada Mundial da Juventude, que iremos incluir o Centenário de alguma forma numa celebração nossa, não só porque o CNE está bastante envolvido e comprometido na sua preparação, mas também porque iremos ter durante essa semana uma missa para todos os escuteiros presentes em Lisboa para a Jornada. Teremos também o Congresso, que deverá encerrar as celebrações do Centenário e que contará com a participação de alguns dos jovens do Fórum 100.

 

Flor de Lis – Que mensagem gostarias de deixar sobre o trabalho que será desenvolvido pela secretaria nacional pedagógica no próximo triénio?

 

Rui António – Sabes que na minha cabeça a grande parte dos adultos não pensam na secretaria nacional, na secretaria regional ou na secretaria de núcleo, e ainda bem. Porque acho que o nosso trabalho, não é que não seja importante, mas não é o trabalho que tem que ter visibilidade. Se eu estou no Agrupamento a desenvolver o meu trabalho e a tentar perceber o melhor possível a nossa abordagem, o que é que é o nosso Método, como é que o aplicamos, como é que podemos efetivamente pôr os miúdos a trabalhar… E se eu nunca me lembrar que existe a secretaria nacional pedagógica ou outros, quase que diria: Ainda bem. Mas o que é que se pode esperar desta secretaria? Alguma atenção, ou maior atenção, a esta nossa forma de trabalhar, alguma vontade de combater algum desalento. Uma das coisas que me causa alguma tristeza é ver a frustração e desencanto que às vezes encontramos em relação ao CNE em abstrato, em relação também a estes secretários nacionais. Vindo eu diretamente de um Agrupamento, que atualmente já não somos os 300 que éramos há muitos anos, mas continuamos a ser um Agrupamento muito grande, com uma atividade muito intensa, com uma presença muito forte daquilo que são, entendo eu, os nossos valores, a nossa forma de atuar, com a patrulha a ir para campo, o serviço, por aí fora, isto para mim continua a ser muito mágico. Uma das coisas que eu gostaria de conseguir fazer, se estiver ao meu alcance, era de ajudar a recuperar este sentido de magia para quem o perdeu. Também acredito que a maior parte que está nos Agrupamentos continua a viver isto com essa intensidade. Não será certamente como era há 10 ou 20 anos ou há 50, mas continua a ser muito mágico, continua a atrair miúdos e graúdos, como eu, outros mais novos, outros mais velhos. Portanto, uma proximidade que eu acho que já é uma imagem de marca desta equipa que vem de trás, uma atenção a estes detalhes que nos tornam o Movimento efetivamente mágico. Por isso é que é importante perceber porque é que na III e IV secção isto não está a funcionar, poderá faltar aqui um pozinho de “pirlimpimpim”. O que é que está a faltar? Reforçar tudo o que nos torna efetivamente diferentes, simplificando, porque muito do desalento é porque há muitas burocracias. Duas das palavras da ação pedagógica são caminho e simplicidade. Às vezes nós complicamos ou sentimos que estão a complicar muito, mas quando eu estou ao sábado com o bando, a patrulha, a equipa, isto é simples. Por muito que nós pensemos que nos estão a complicar a vida conseguimos viver em simplicidade. Isso também vai implicar perceber porque é que as pessoas estão a dizer que isto é complicado. Se calhar temos manuais a mais, regulamentos a mais também, ou viver em patrulha ficou mais complicado… O que é que podemos fazer para simplificar? Portanto, ajudar a manter esta chama viva e esta magia que ainda não se perdeu. É também percebermos que o Escutismo que vivíamos antes é forçosamente diferente. Não temos que nos conformar com isso, mas temos que perceber que há um conjunto de condicionantes da sociedade, nos jovens, nas crianças, dos jovens adultos… Que são diferentes do que eram há 30 anos, mas isso não tem necessariamente de tirar a magia e mérito à forma como fazemos as coisas. Quero conseguir endereçar alguns destes desafios às estruturas, que para mim tem sido uma imagem de marca desta equipa, se calhar alguns deles são demasiados abstratos mas depois afetam diretamente os nossos adultos voluntários que tentam desenvolver o seu trabalho para as crianças e jovens. Queremos chegar aos Agrupamentos, aquele chefe de unidade para ajudá-lo a fazer um trabalho com alegria, que não seja um trabalho cada vez mais pesado e aliviar um pouco essa carga. Se a nossa mão não for visível, é sinal que as coisas estão a correr bem.

 

Flor de Lis –  Por último, gostaria de te pedir três palavras que definam o que é para ti o CNE.

 

Rui António – Escolha, Responsabilidade e Evangelização. Não sendo caraterísticas exclusivas do CNE, são muito próprias daquilo que é a abordagem do Movimento e da aplicação do Método, porque representam algo em que temos vindo a colocar maior ênfase. A Escolha, porque procuramos por o mais possível nas mãos dos nossos elementos este fator, seja desde a escolha do guia da Patrulha, ao caminho que se escolhe para Progredir, passando pelas atividades que ajudarão a atingir os objetivos e, claro, pela Promessa. Cada um escolhe o que quer ser. Em seguida, a Responsabilidade, no sentido em que a liberdade da Escolha implica o compromisso pessoal em trabalhar para alcançar o que se escolhe. Seja no desempenho do cargo, no percorrer do Trilho, na tarefa que se assumiu perante a Patrulha ou em fazer todo o possível por cumprir aquilo que se prometeu. Por último, a Evangelização, porque o caráter evangelizador do CNE será certamente uma das suas características distintivas, potenciando a descoberta do sentido de Deus (tão presente na obra de BP) por tantos e tantos jovens, numa ação que terá particular significado junto dos que estão ‘de fora’ e que, ao ser convidados a conhecer a proposta do Escutismo Católico, poderão descobrir e abraçar a Fé.

Texto: Cláudia Xavier

Fotografia: Gonçalo Pinto

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *


O período de verificação do reCAPTCHA expirou. Por favor recarregue a página.

Website protegido por reCAPTCHA. Aplica-se a Política de Privacidade e os Termos de Serviço da Google.