Tiago Mendonça: «A gratidão por si só, se não tiver por consequência a generosidade, não vale de nada»

Tiago foi escuteiro durante dez anos e é um exemplo de empreendedorismo. Rapidamente percebeu que a vida de advogado não era para si e num salto de fé fundou a Academia de Direito WE HELP. YOU WIN.

Flor de Lis (FL): Como é que surgiu o Escutismo na tua vida e onde foste escuteiro?

Tiago Mendonça (TM): 582 Moscavide! Grande Agrupamento. Comecei com oito anos. Eu inscrevi-me mais cedo, com seis anos, mas havia muitas pessoas [em lista de espera], então não deu para entrar logo. Entrei com oito anos e [ser escuteiro] era uma coisa que queria desde muito pequenino, mais os meus pais, que me incentivaram a isso. Ainda fui a tempo de fazer dois anos de Lobito, depois fiz os quatro de Explorador, mais os quatro de Pioneiro, até aos 18 anos.

 

FL: Que memórias guardas desses tempos?

TM: Foi incrível. Eu estive no Congresso [do Centenário] em Coimbra e disse isto: acho que os escuteiros sempre foram uma espécie de termostato para mim. Ou seja, capaz de me elevar para cima e também pôr um travão, que também é preciso. Naquele período dos Exploradores, as coisas não foram muito fáceis na escola. Tive de mudar de escola; eu estava no grupo dos mais aplicados, que eram muito poucos, e portanto era posto um bocadinho de lado. E eu sabia que, quando chegasse ao fim de semana, quando chegasse ao sábado, ia ter os meus amigos [nos escuteiros], onde éramos todos iguais, onde nos divertíamos todos juntos e não havia diferenças nenhumas. Isso foi muito importante nesse período. 

Depois, quando passo para os Pioneiros, mudo de escola, e muda também um bocadinho a minha vida. Acabo por ser Presidente da Associação de Estudantes e, aos 15 anos, Presidente da Associação de Estudantes, o nariz vem cá para cima, «sou o maior!» (risos). E, ao mesmo tempo, quando chegava ao sábado, estavam lá os meus amigos, os mesmos amigos, e voltávamos a ser todos iguais. Não havia Presidente da Associação de Estudantes nem nada, éramos todos iguais, e isso também foi muito importante para me acalmar um pouco. Para mim, foi muito importante, além de muitas outras coisas, os escuteiros serem este termostato e me permitirem manter-me sempre muito equilibrado: não ir demasiado abaixo naqueles anos mais chatos, e também não ficar demasiado deslumbrado naqueles anos em que fui mais popular na escola. 

 

FL: A nível académico, o Escutismo teve algum impacto no teu percurso?

TM: Sim, eu acho que foi muito importante em tudo o que eu faço. Foi importante no meu sucesso académico e depois sobretudo no meu sucesso profissional. Eu tenho dito sempre a todas as pessoas que me perguntam, por exemplo, seja no domínio académico, «como é que eu devo fazer uma tese?», ou, no domínio profissional, «como é que eu devo montar uma empresa?», que o método escutista é bastante fiável para qualquer projeto que nós pensemos fazer. Aquele processo de trabalho que aprendemos nos escuteiros – numa primeira fase a escolha, depois a preparação, depois a execução e finalmente a avaliação – acho que é válido para tudo. Pelo menos no 582, nos Pioneiros sobretudo, nós tínhamos muito foco na questão da avaliação. Era muito importante avaliarmos como correu o acampamento, ou o Empreendimento. Nós tínhamos muitos momentos de avaliação, e eu levei isso para mim durante a parte académica, e levo isso hoje na parte profissional. Ou seja, tirar algum tempo para avaliar, e avaliar a sério. Eu acho que nos escuteiros nós podíamos dizer tudo. Às vezes, ficávamos um bocadinho mais melindrados porque tínhamos de reconhecer os nossos erros à frente dos nossos amigos, mas isso foi sempre muito importante para mim, e acho que me tornou mais competente naquilo que me propunha a fazer, tanto no plano académico, como depois no plano profissional. Imagino-me sempre, quando faço a minha autoavaliação no que quer que esteja a fazer, numa reunião de sábado à tarde em que podemos dizer o que estamos a pensar aos nossos amigos, que, no fundo, estão preocupados connosco e querem que nós melhoremos. E isso é fantástico.

 

FL: E no teu percurso profissional, quais foram as marcas que o Escutismo deixou?

TM: Eu fiz o curso de Direito e depois estive dois anos num escritório de advogados. Era uma sociedade em Lisboa, daquelas grandes que parecem as das séries, e não gostei nada. A educação que tive nos escuteiros acho que me ajudou a não gostar nada [dessa experiência], ou a perceber que não ia gostar nada, porque, sinceramente, não era para mim aquela ideia de estar fechado num escritório de fato e gravata todos os dias a fazer sempre as mesmas coisas. Acho que retirava muito da minha parte criativa, que era muito potenciada nos escuteiros. 

Criar o meu próprio negócio sempre foi um objetivo, mas pensava que ia fazê-lo mais tarde do que em 2014. Deixei o escritório de advogados (estive lá dois anos, entre 2012 e 2014) e fundei a WE HELP. YOU WIN, que é uma academia para alunos de Direito. Mantive-me no Direito, claro, não vale a pena inventar muito (risos). Lá preparamos os alunos para os exames de magistratura, da advocacia, o plano da licenciatura. Preparamos os alunos para esses projetos e objetivos e, sempre que falo com eles, o método escutista é muito claro. Pergunto «O que queres fazer? Qual é o teu objetivo?», fazemos muitas reuniões, porque às vezes os objetivos não são os mais tangíveis. Depois, é preciso preparar esses objetivos. É muito importante tentar passar aos alunos da licenciatura, que estão naquelas idades de Pioneiros e início de Caminheiros, alguns destes princípios e métodos escutistas. 

Na própria criação da academia, do negócio, foi e é absolutamente decisivo aplicar o método. Para mim, criar um negócio, um empreendimento, fazer uma viagem, não foge muito ao método dos escuteiros. Eu digo que a minha escola de empreendedorismo foi os escuteiros. Nós aprendemos lá tudo. Começamos pela escolha do objetivo, e eu escolhi abrir uma academia de Direito porque sei que tenho jeito para isso por já ter tido experiências em dar aulas. Não quis fugir muito [à minha área]. Acho que às vezes é esse o problema [dos empreendimentos que correm mal], as pessoas têm jeito ou gostam de determinada coisa e depois inventam muito. Quer dizer, eu não posso ser arquiteto (risos). Não dá para ser jogador de basquetebol porque sou baixinho. No fundo, é não fugir [ao que sabemos], preparar bem – às vezes as pessoas começam negócios a partir de pressupostos que não existem. Quer dizer, no outro dia vi na zona industrial em Lisboa, que é onde tenho o meu escritório, um tipo a lançar um restaurante hamburgueria que tinha lá dentro um simulador de surf. Ou seja, as pessoas iam, a meio do almoço, fazer surf. Claro, fechou num mês. 

Depois chegamos à parte da execução do projeto, em que é preciso aquela volatilidade que os escuteiros nos ensinam – o «não entrar em pânico». «Okay, esqueci-me de trazer aquele material!» ou «Não verifiquei a tenda!», não há problema, vamos resolver, há várias soluções para resolver isso. Isto é muito importante para mim e é muito raro eu ficar preocupado com alguma coisa que se passa no meu negócio, porque sinto sempre que tenho essa capacidade [de resolver]. 

E depois chego à parte da avaliação. Faço uma avaliação crua e séria, que eu acho que poucas pessoas fazem. Eu sinto essa dificuldade com alguns alunos, quando tenho de lhes apontar alguma coisa, eles às vezes ficam um pouco defensivos, porque não têm esse mecanismo [de autoavaliação]. Eu sou muito chato na avaliação. Todos os anos, no final, tiro quatro ou cinco dias em que me isolo para avaliar o ano. É uma coisa um bocado tonta, mas acho que isso é muito importante porque se eu não pensar no que fiz mal, como é que posso melhorar? Não posso. E então acho que os escuteiros, nesse ponto de vista, foram muito importantes. Eu não frequentei nenhuma escola de empreendedorismo, não fiz nenhum curso de como montar um negócio. O que aprendi nos escuteiros foi decisivo, além de outros valores que também são importantes.

 

FL: Que mais-valias o Escutismo traz à vida profissional das pessoas que já foram escuteiras?

TM: Primeiro, é a questão de não entrar em pânico. Nos escuteiros, os acampamentos são uma sucessão de coisas que correram mal na preparação (risos), porque há sempre coisas que vão acontecendo de forma diferente do que esperávamos. E até encaramos isso como uma piada: «Okay, agora aconteceu aqui este problema, como é que vamos reagir?» Eu acho muito importante a capacidade de reagir, a capacidade criativa. 

Outro conceito, e esta palavra é um bocado diabolizada hoje em dia, é o networking, mas não tem nada de mal, o ligarmo-nos a pessoas. Hoje vamos fazer um favor a uma pessoa sem esperar outra recompensa, e daqui a três meses se calhar essa pessoa vai estar disponível para nos ajudar, ou não, e só o facto de termos sido generosos já é bom. E eu acho que esse networking, essa capacidade de nos ligarmos a pessoas muito diferentes, é muito importante. Se eu pensar no Jamboree Mundial a que eu fui na Tailândia (estava um ótimo tempo!), conheci pessoas de outros países, completamente diferentes, de todas as idades, e ficaram amigos para a vida. Na altura, conheci umas pessoas da Costa Rica e há dois ou três anos uma delas veio cá visitar-me. Estivemos os dois em Lisboa, um português e uma costarriquenha que se conheceram na Tailândia. Essa dinâmica é muito boa porque nos obriga a sermos completamente flexíveis. Nos escuteiros não há classes sociais, nada disso interessa. Somos todos companheiros. 

Hoje, na WE HELP. YOU WIN, trabalho com cerca de 350 alunos por ano. São todos muito diferentes, de sítios de Portugal diferentes, alguns do estrangeiro, classes sociais diferentes, uns são trabalhadores-estudantes, outros podem dedicar-se só aos estudos. Os escuteiros dão-nos as skills de adaptabilidade necessárias para lidarmos com pessoas muito diferentes, para percebermos melhor a realidade do outro. Nos escuteiros, nós conhecemos pessoas completamente diferentes, não havia ali ninguém que tivesse a mesma vivência. Se eu pensar nas cinco ou seis pessoas com quem falo mais, são pessoas completamente diferentes. Penso no Ivo, que é enfermeiro, a Sara é hospedeira, a Claire está na Noruega, o Pedro foi para a Córsega, o Sérgio está na Irlanda… Cada um seguiu caminhos diferentes. Não foram todos para o estrangeiro, mas todos seguiram esta ideia de empreendimento, de aventura. 

Acho muito visível esse espírito aventureiro em quem foi escuteiro. Mesmo quem está por cá, é muito raro não ter pelo menos uma parte desse espírito de aventura. Por exemplo, o Ivo é enfermeiro, que é uma profissão mais standard, mas, por exemplo, é um fervoroso adepto do Benfica e segue o clube. Também tem essa parte de aventura e de ir à procura. E fica o companheirismo, acho que isso é decisivo. Podem passar anos que não nos vemos pessoalmente, mas estamos sempre lá, e isso é incrível. 

 

FL: E que outras coisas levaste do Escutismo para a tua vida pessoal?

TM: Da vida pessoal, posso já dizer, que a minha mulher foi escuteira ao mesmo tempo que eu. É logo uma grande marca. Ela continuou mais tempo do que eu, mas conhecemo-nos nos escuteiros quando eu tinha 12 anos e ela tinha 10. Lembro-me perfeitamente do primeiro acampamento dela nos Exploradores, de a ver chegar. Depois conhecemo-nos e o resto é história. É uma marca bastante significativa. Ela chegou a ser Dirigente, fez o percurso dos Caminheiros que eu não cheguei a fazer e isso também me manteve mais próximo dos escuteiros, ou, pelo menos, do agrupamento. Mas diria que, do ponto de vista pessoal, ficou comigo a questão da generosidade. E não é aquela generosidade do «vamos ser todos amigos», não é propriamente isso, é olhar para o mundo de forma grata e corresponder com generosidade. Fiquei com a parte do querer ajudar, do estar pronto para servir, e acho que isso é algo importante. 

Depois há outro aspeto que me marcou muito. Não sei se é uma marca que fica em todas as pessoas, mas eu acho que o contacto com a Natureza, com os animais, teve muito a ver com a minha decisão de sair do escritório e agora com a decisão de sair da cidade. Eu vivo numa aldeia ao pé do Montejunto, onde nós acampávamos imensas vezes, para ter Natureza e ter espaço. Saio de casa e vou fazer um trilho. Não há poluição nenhuma. Isso ficou-me dos escuteiros, o contacto com a Natureza. Quando penso em educar os filhos, penso muito nisso. Ou seja, estamos numa época do «toma lá o tablet e faz-te à vida». Se calhar, podemos fazer outras coisas, se tivermos tempo. Se calhar é giro fazer um trilho, é giro ir andar de canoa, quando forem mais velhos. Acho que essas marcas vão sempre ficando. 

É curioso que nos escuteiros não há um «agora vamos sentar-nos e vamos passar-vos estes valores», é uma coisa muito natural. Eu lembro-me de ter um Chefe nos Pioneiros que era o Sérgio Mouta e vinha sempre com a conversa do «temos de ter brio, temos de ter brio, temos de ser competentes». Até irritava um bocado, porque é que temos de fazer tudo certo se às vezes podemos fazer um bocadinho mais rápido. Mas depois faz todo o sentido. E isso marca pessoal e profissionalmente, sem dúvida. 

 

FL: És um viajante. Este “bichinho” das viagens surgiu nos escuteiros?

TM: Sim. A primeira vez que andei de avião foi com os escuteiros, no Jamboree da Tailândia. Viajar, só tinha ido a Espanha e sempre de carro. A partir daí acho que fiquei com essa vontade e não voltei a parar. A segunda viagem que fiz também foi com os escuteiros, em 2005, ao Centro Escutista de Kandersteg, na Suíça. Sim, já fui a cidades grandes, como Tóquio, mas em quase todas as minhas viagens há a vertente da Natureza. As minhas viagens favoritas foram de Natureza, como a Islândia, que é Natureza total, Nova Zelândia, mesmo no Japão fui a Kyoto, que tem também muita Natureza. Faço muitos hikes. E ficou a ideia da aventura, ou seja, ir à procura de coisas novas. Eu gosto bastante de viajar sozinho pelo lado da aventura, porque nunca sei o que vai acontecer. 

 

FL: O que é o Escutismo para ti?

TM: Essa é a pergunta para um milhão de dólares (risos). Ser escuteiro é estar sempre em permanente alerta para poder servir, para poder integrar a comunidade e para poder ajudar as outras pessoas. Não digo isto pela perspetiva do «ah, sou muito bonzinho», é porque eu acredito mesmo, e a vida tem-me demonstrado isso. 

A gratidão por si só, se não tiver por consequência a generosidade, não vale de nada. Tenho tido essa experiência tantas vezes na vida: quando damos um bocadinho mais, porque estamos agradecidos, vem sempre retribuído. Isso é uma espécie de avalanche de felicidade. Nós entregamo-nos aos outros, com uma atitude altruísta, de querermos servir e ajudar, e isso vem retribuído em dobro. Temos é de estar disponíveis e alerta para perceber essas questões. Muitas vezes, com os meus alunos, eles perguntam «como é que notaste isto?» e eu acho que estou muito desperto para perceber os problemas das pessoas e tentar ter algum impacto rapidamente. Também podemos pôr isso do ponto de vista financeiro. Quando faço um bom trabalho com um aluno, porque estive mais alerta, porque me excedi, porque fui além da parte profissional, porque estou atento a aspetos da vida dele, se calhar esse aluno vai ficar com uma boa impressão e vai recomendar a dois ou três amigos. Até financeiramente isto é uma bola de neve. Esta generosidade, esta capacidade e disponibilidade de estar alerta para servir é a base do Escutismo. 

Entrevista: Catarina Valada.

Fotos: Tiago Mendonça.

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