Viva 25 de Abril! Viva os 50 anos da tão desejada liberdade no Corpo Nacional de Escutas!

Nas comemorações do 50.º aniversário da Revolução dos Cravos, que trouxe a tão ansiada liberdade a Portugal, vale a pena celebrar as conquistas que Abril trouxe ao Escutismo, e em especial ao CNE.

Este curto artigo do Centro de Documentação Escutista/Museu do CNE junta fontes do Arquivo do CNE, Arquivo da Flor de Lis e ainda relatos (na primeira pessoa) de alguns Dirigentes que fizeram parte da Junta Central ou de estruturas nacionais antes, durante e depois do 25 de Abril de 1974.

Durante a vigência do Estado Novo, o Movimento Escutista era pouco mais que “suportado” pelo Regime. No passado, o Ministério da Educação Nacional tinha mesmo tentado suprimir o Escutismo após a criação da Organização da Mocidade Portuguesa, e tal só não aconteceu por o CNE ter sido escudado pela Igreja, e a AEP por certas esferas das elites militares e políticas de Lisboa.

O Escutismo era, em boa verdade, de acordo com a mentalidade de quem governava e dirigia a Ditadura, incómodo. As capacidades mobilizadoras e dinâmicas davam ao nosso Movimento uma credulidade inexistente na Mocidade Portuguesa. Acrescentam-se a promoção de valores de solidariedade e fraternidade internacional, apregoados pelos escuteiros, que não eram vistos com bons olhos.

Desde 1962 que várias alterações aos Estatutos associativos tinham sido bloqueadas ou vetadas pelas autoridades do Estado Novo, entre as quais a criação de eleições para Chefe Nacional e respetiva Junta Central. Consequentemente, o Regulamento de 1965 do CNE foi publicado com uma promessa de o CNE ter de estar em «colaboração com a Organização Nacional da Mocidade Portuguesa» e não previa qualquer abertura a eleições ou democratização associativa. Também por essa altura, a Mocidade Portuguesa irá emular as estruturas, organização e atividades do Escutismo para tentar abafar o Movimento, mas sem sucesso.

Há muito que havia um desejo de democratização das estruturas do CNE[1], em especial pela Região de Lisboa, que intimava uma autodeterminação dos seus órgãos regionais. Só com o Conselho Nacional de 1971, com o apoio da Junta Central, começaram os trabalhos para uma reflexão congruente ao futuro associativo, que queria tornar-se mais transparente e progressista, e das quais saíram várias deliberações a serem implementadas nos vários níveis a partir do verão de 1973.

Justamente, o primeiro processo eleitoral aberto e sem interferências de órgãos superiores, começa a 6 de janeiro de 1974 (sem que as eleições estivessem ainda refletidas no Regulamento do CNE!), para a eleição da Junta Regional de Lisboa, e com eleições a 17 de maio de 1974, em pleno período revolucionário, e de forma exemplar. Não houve, aparentemente, nenhuma tentativa por parte do Regime em boicotar ou proibir estas eleições planeadas ainda durante a vigência do Estado Novo, uma vez que quem votaria seriam escuteiros mais velhos, visto que «os jovens ou estavam em África ou nas Universidades então não votavam», e só existia uma lista em eleição encabeçada pelo Chefe Velez da Costa, um escuteiro muito respeitado e acarinhado. Consequentemente, tentar impedir as eleições era criar um problema que não existia.

Por outro lado, questões, para além das eleitorais, dentro do CNE começavam a verbalizar um descontentamento, ou mesmo uma oposição, ao Regime. Em especial a Guerra Colonial, que perdurou de 1961 até 1974, provocou a morte de quase 9000 jovens e feriu permanentemente mais de 15.000. Esta Guerra teve um grande impacto no CNE, não só pelas notícias constantes que chegavam aos agrupamentos notificando a morte de um dos seus irmãos escutas, como também dificultou a manutenção de muitas atividades ou grupos com a falta de Caminheiros ou Dirigentes que tinham sido conscritos a combater nos territórios das ex-Colónias portuguesas[2]. Apesar do descontentamento, por vezes verbalizado pela PIDE/DGS, esta teve alguma tolerância por estas atitudes, pois o CNE estava escudado pela Igreja… Até à Vigília da Capela do Rato de 1972.

Aquando da Vigília da Capela do Rato, ocorrida em Lisboa, em que um grupo de católicos assumiu uma ação de protesto e posição contra a Guerra Colonial e a ditadura do Estado Novo, participaram alguns escuteiros do Agr. 39 Santa Isabel. A partir dessa data foi notória a vigilância da polícia política no CNE e a perseguição e prisão de alguns associados. Essa vigilância (e até repressão) era especialmente sentida nas formações de Dirigentes. Em Lisboa, o Programa de Formação de Dirigentes (PFD) tinha de ser enviado à Direção-Geral de Segurança, e alguns documentos eram censurados e proibidos de serem transmitidos. Estas escolas de formação de Lisboa, por norma, ocorriam no Seminário dos Olivais e era comum os escuteiros “caçarem” (quase em modo de jogo) os agentes da DGS que tentavam entrar à socapa e espiar as suas formações. O Assistente Regional de Lisboa, Padre José Fialho, um grande defensor do CNE e uma voz de oposição à Ditadura, tem como grande interesse que a formação de Dirigentes ocorra livre de influências do Estado Novo.

Com a Revolução dos Cravos, a vontade de mudança associativa ganha uma nova força, não sem paradoxalmente resultar em algumas incertezas sobre o futuro do Escutismo e uma quase desordem em casos isolados, que de modo nenhum produziram uma situação concreta de crise na vida associativa. No primeiro Conselho Nacional “da democracia”, a 7 de julho de 1974, a antiga Junta Central comunica oficialmente a sua demissão a todos os conselheiros, começando assim um debate mais plural de ideias, mas sem prescindir do que distinguia a essência de ser escuteiro no CNE ou abdicar de ser um movimento da Igreja Católica.

Durante o PREC, o Escutismo nunca suspendeu as suas atividades, porém foram vários os incidentes que ocorreram de Norte a Sul do país: sedes ocupadas ou saqueadas por partidos de esquerda (havendo em certos agrupamentos uma escala para que as suas sedes nunca estivessem vazias), em certas cidades procurou-se realizar atividades sem uniformes e apenas de lenço, e uma organização armada de extrema-esquerda, no verão de 1974, terá mesmo tentado realizar um atentado à bomba na Sede Nacional do CNE, que só não se realizou pois havia um escuteiro filiado com um alto cargo dentro do MRPP (de nome de código «Paquete») que rapidamente informou os Dirigentes para não utilizarem mais o edifício, impediu o atentado e mais tarde defendeu de ocupações e assaltos a nossa Sede Nacional da Rua da Fé.

Com a democracia e liberdade, o Corpo Nacional de Escutas teve de gizar um plano para “sobreviver” autonomamente face à Igreja, no fundo uma “autossuficiência”, mas não uma “autonomia”. Apesar de nunca ter sido posto em causa que o CNE continuaria a ser um modelo de Escutismo Católico, os tempos eram de incerteza, e a Igreja que tinha escudado o CNE durante a ditadura poderia não alcançar o mesmo durante o PREC. Isto foi visto com maus olhos em algumas paróquias, onde certos padres se recusaram a presidir a promessas de novos escuteiros, obrigando os grupos a irem realizar as suas promessas em conjunto com outros agrupamentos ou até mesmo realizar as suas promessas sem assistentes.

Após a comunicação da demissão da Junta Central, em julho de 1974, o debate dentro da associação até poderia ter sido fraturante, e houve grandes temas que bipolarizaram as opiniões dos Dirigentes e Caminheiros. Todavia, terminou sem grandes percalços ou abandono de associados, muito pelo contrário: após o 25 de Abril de 1974, o número de filiados no Corpo Nacional de Escutas irá aumentar.

De maneira mais ou menos organizada, tinha sido criada logo em abril de 1974 uma Junta de Salvação Nacional Escutista com o intuito de gerir a associação e garantir a sua transição para a democracia. Porém, sem Junta Central, a Junta de Salvação Nacional Escutista antecede que possa perder a sua legitimidade e informa que se irá realizar eleições para a criação de uma Comissão Executiva que irá definir o novo Regulamento do CNE, e, consequentemente, organizar os moldes para as eleições da associação. Composta maioritariamente por Dirigentes de Lisboa e por Dirigentes já com cargos intermédios envolvidos nas estruturas da associação, a Comissão Executiva Nacional irá utilizar os moldes das eleições regionais de Lisboa, adaptando-os para o resto da associação. A Comissão vai ter uma preocupação especial em distanciar o CNE da vida política, que tendia cada vez mais a bipolarizar-se e radicalizar-se no espaço público. Terá mesmo recusado um pedido do Ministério da Administração Interna, que requereu ao CNE que fossem escuteiros que ajudassem na divulgação de comícios e eventos políticos.

Entre as grandes mudanças nos novos Estatutos estava a aposta na coeducação, uma resolução não “aprovada” instantaneamente, mas dissimulada já em 1975, quando o CNE se identificava como uma «associação de juventude, destinada à formação integral dos jovens», deixando implícito que o Escutismo não era só «para rapazes». A existência de patrulhas femininas de “escuteiras” não era estranha na associação apesar de rara, circunscrita a poucos agrupamentos e não ser regulamentada. Estas patrulhas, presumivelmente compostas por filhas de Dirigentes e irmãs de escuteiros, estavam isoladas e apenas com uma atividade paroquial. Era comum as patrulhas femininas adotarem nomes de aves. A presença de “senhoras dirigentes” e “Àquelás” era, porém, antiga e uma realidade desde a década de 1930. A oficialização da coeducação é aprovada em junho de 1976 no Conselho Nacional com a criação de “patrulhas de estudo”. Estas geraram alguma contestação e hesitação de certos círculos de Dirigentes, cabendo a cada Junta Regional a decisão final de implementar a coeducação na sua diocese. Em 1980 tornava-se definitiva a experiência de incluir raparigas no CNE, com a ratificação e alteração estatutária aprovada no ano seguinte.

Quando são anunciados os moldes das eleições em novembro de 1974, rapidamente o Chefe Velez da Costa, na altura o Chefe Regional de Lisboa que se tinha sujeitado a votos, apresenta a sua candidatura à Junta Central, formando a Lista A. O Chefe Velez, sendo escuteiro há muitos anos, Cavaleiro da Pátria, uma voz ativa no CNE, bem relacionado com muitos escuteiros e uma presença assídua nos Conselhos Nacionais, parecia a escolha óbvia a todos, e ninguém quis apresentar uma lista concorrente.

Porém, aos olhos da Comissão Executiva, e não só, seria importante a disputa entre dois candidatos de forma a criar e espicaçar em todos os escuteiros envolvidos nos restantes órgãos nacionais (que também iriam a eleições) um espírito eleitoral e de mobilização democrática, onde o ato de votar seria importante e poderia realmente mudar os destinos da associação, como legitimaria de forma reforçada a lista vencedora. Fazia parte da Comissão o Chefe Carlos Aleixo, que em outubro de 1974, por ser militar, tinha sido chamado a cumprir dever em Moçambique. Também ele era bastante ativo e dedicado ao CNE, que tal como o Chefe Velez era escuteiro há largos anos, Cavaleiro da Pátria e já tinha ocupado alguns cargos de chefia no seio da associação. Na ausência de qualquer outro candidato, a Comissão Executiva dissimuladamente decide lançar a candidatura do Chefe Carlos Aleixo, que terá sabido da sua candidatura por uma chamada telefónica.

Havia laços de amizade com várias décadas entre elementos da Lista A e da Lista B, todos se conheciam, todos tinham pertencido às mesmas equipas durante vários Acampamentos Nacionais. Com a constituição da Lista B ficou bem assente, e desde a primeira hora acordado, que fosse qual fosse a lista vencedora a futura Junta Central seria composta por seis membros de ambas as listas e de um assistente nacional, nomeado pela Igreja, para desempatar todas as decisões se necessário. «A amizade era o grande motor» do CNE.

As eleições estavam marcadas e decorreram em julho de 1975. Durante o período eleitoral, são vários os artigos publicados por ambas as listas e opiniões de Dirigentes independentes que ora apoiavam a “A” ou a “B” – dizia-se que a Lista A era a mais conservadora e a Lista B a mais progressista. A campanha realizou-se através do envio de «alguns poucos» panfletos e os programas na publicação de circulares. Ambas as listas realizaram pelas maiores regiões (Braga, Lisboa, Porto, Coimbra e Leiria) uma tournée para se darem a conhecer (apesar de ambos os candidatos serem bem conhecidos).

Em julho, apesar de tudo, existiu ainda assim a necessidade de Dirigentes de Lisboa assegurarem mesas de votos em outras regiões, e a totalidade das mesas na região de Lamego, fruto de uma oposição ou fruto de uma imaturidade democrática, falta de interesse ou vontade. Após o encerramento das urnas, todos os votos foram contabilizados em Lisboa. Os resultados foram os esperados, «Ganhou a Lista A», mas todos venceram as eleições dando origem ao chavão publicado na Flor de Lis de julho de 1975, «Ganhou a Lista A, Ganhou a Lista B». Assim sendo, a 19 de julho, o CNE «assistiu à “morte” da Comissão Executiva» e à proclamação da nova Junta Central. 

[1] Desde cedo que o nosso método escutista está alicerçado na eleição de um Guia de Patrulha, um primus inter pares – terá isso sido um bichinho, um gatilho, para a vontade de democratização do CNE?

[2] Como forma de tentarem fugir ao recrutamento militar e à Guerra, também foram muitos os jovens do CNE a concorrerem às universidades ou a emigrar, agravando ainda mais o problema de falta de Caminheiros e Dirigentes.

 

Texto: Bruno Cristóvão – Centro de Documentação Escutista (CDE).
Foto: Arquivo CNE.

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