Entrevista à Dra Ana Nunes de Almeida

Ana Nunes de Almeida tem um vasto currículo na área da sociologia da infância e da adolescência. É uma investigadora com muita experiência nesta área e coordenou, em 1999, um estudo sobre maus-tratos a crianças na família. É atualmente presidente do Conselho Científico do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Conselho Consultivo do Instituto de Apoio à Criança. Foi o seu currículo que a levou a integrar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica. 

Flor de Lis (FL) – Qual o enquadramento da Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica?

Ana Nunes de Almeida – A Comissão constituiu-se a partir de um convite que a Conferência Episcopal Portuguesa fez ao Dr. Pedro Strecht para desenvolver um estudo sobre os abusos sexuais na Igreja a crianças, à semelhança do que tinha sido feito em outros países. O objetivo foi fazer um relatório sobre a situação passada, o presente, para se poder atuar de maneira diferente no futuro. O Dr. Pedro Strecht aceitou na condição de poder constituir a sua equipa livremente. Teve essa liberdade e, portanto, escolheu cinco pessoas para trabalharem com ele, quatro das quais tinham experiências na área da infância e na área dos abusos e crimes contra as crianças. O que é sempre muito interessante, porque todos tinham formação disciplinar diferente, como a psicologia, psiquiatria, jurídica, ciências sociais, etc. Com a possibilidade de darem contributos diferentes, desafiou também a Catarina Vasconcelos, fora deste tema porque é cineasta. Pareceu-nos muito importante que existisse alguém da sociedade civil, que pudesse interpelar-nos com perguntas incómodas. A presença da Catarina foi muito importante, porque desassossegou, perturbou, no bom sentido da palavra. Era, portanto, uma equipa multidisciplinar, uma equipa que tinha pessoas de várias gerações.

Flor de Lis – Também é importante, não é?

Ana Nunes de Almeida – Muito importante. Uma das quais nascidas depois do 25 de abril, a Catarina. É a paridade de género, três homens e três mulheres. Quando começámos a trabalhar existia um sentimento de estarmos num terreno completamente movediço e desconhecido. Descrevemos esse trabalho ao longo do nosso relatório. Foi um ano muito intenso. Eu sabia que ia para um trabalho que não era fácil porque já tinha feito um estudo sobre maus tratos às crianças na família, nos anos 90, encomendado pela Assembleia da República, portanto já tinha lidado com a questão dos maus-tratos a crianças, onde estava incluído o abuso sexual. Já nesse momento tinha ficado bastante perturbada com as descrições. No caso deste estudo, ao longo de meses recebemos aqueles testemunhos, estando por vezes com as vítimas, porque fazíamos entrevistas presenciais. Foi uma experiência absolutamente devastadora, muito dura. Tive noção de níveis de sofrimento inimagináveis.

Flor de Lis – Nunca tinha conhecido esse tipo de sofrimento?

Ana Nunes de Almeida – A dimensão da devastação que é um abuso sexual é inimaginável. Eu tinha uma espécie de escala de sofrimento na minha cabeça completamente errada, ou seja, não existem abusos que sejam mais graves que outros. Qualquer que seja o abuso é uma experiência completamente devastadora, que destruiu aquela pessoa.

Flor de Lis – Portanto, não está relacionado com o nível de gravidade, mas sim com o impacto que tem na própria pessoa?

Ana Nunes de Almeida – Não queria tirar essas conclusões, por não ser psiquiatra nem psicóloga. Mas o que eu encontrei foram pessoas com a vida destroçada com a forma de abuso que eu, Ana Nunes de Almeida, julgava mais ligeiras. Foi uma experiência única, um trabalho de uma vida. Já tenho esta idade e não vou estar muito mais tempo na Academia, portanto, ao mesmo tempo senti-me agradecida de poder ter contribuído com as ciências sociais para a realização deste trabalho.

Flor de Lis – E em relação aos resultados, qual é a sua opinião?

Ana Nunes de Almeida – Os resultados em grande parte não me surpreenderam. Eu estava absolutamente convencida que o que se passava em outros países também se passava em Portugal. Obviamente pela importância que a Igreja Católica tem na sociedade portuguesa, pela importância que as instituições da Igreja têm no acolhimento, na formação de crianças e, portanto, para mim não foi uma novidade. Nem na quantidade, porque temos noção que ao vermos estes casos são apenas a ponta do iceberg, não se percebe o que está por baixo, uma extensão do fenómeno. O que me surpreendeu foi de facto a ocultação, o facto de existirem tantas vítimas que procuraram contar o que se passava e que, quer os pais quer os seus familiares mais próximos, quer a Igreja, simplesmente os ignorou. Ninguém ajudar a sério, é fazer parte da ocultação, fazer parte do abuso sexual. Primeiramente foi a própria criança a ocultar, porque se sentiu muito envergonhada, com medo. Quem faz isto é uma pessoa em quem ela tem confiança e essa pessoa abusou dela.

Flor de Lis – Deixa de ter confiança nas pessoas que a rodeiam, não é?

Ana Nunes de Almeida – Das pessoas que a rodeiam, sente-se completamente cercada. A quem é que vai contar? Não pode, porque dentro da própria família sente-se envergonhada, tem medo de contar aos pais, porque a maior parte que contou levou uma tareia… Estas vítimas sentiram-se completamente desacreditadas. Eu não tinha noção da dimensão destes círculos de ocultação. 

Flor de Lis – É como se fossem várias camadas de ocultação.

Ana Nunes de Almeida – Sem dúvida. O que também me surpreendeu foi a quantidade de mulheres que prestaram o seu testemunho, que acho estar relacionado com o poder e o protagonismo que a mulher ocupa na sociedade portuguesa. A nossa amostra era de gente qualificada, altamente escolarizada. 

Flor de Lis – No futuro quais são os principais focos de ação? Sente que o relatório é o início de uma mudança?

Ana Nunes de Almeida – Eu ainda não sinto nada, mas estou muito expectante. Alguns bispos levaram muito a sério as conclusões do relatório, aliás não estavam à espera de outra coisa, não é? Houve um desvio de atenções para detalhes e para coisas que até nem eram a nossa função, como as famosas listas. Houve uma mudança de agulha e uma desfocagem daquilo que é importante. As nossas recomendações são para a mudança de paradigma, de cultura. E agora, mais que nunca, nós sentimos essa necessidade. A atitude da Igreja deverá colocar a vítima no centro de todo o discurso, no centro de toda a narrativa e no centro de toda a preocupação. 

Flor de Lis – Que mais se poderá fazer pelas vítimas?

Ana Nunes de Almeida – Deve criar-se um movimento empático de proximidade com as vítimas. Acreditar no que elas estão a contar, de maneira a que elas possam dirigir-se à Igreja ou a quem for para validar estes testemunhos. É preciso que as pessoas sintam e retomem a confiança. Acho que tudo o que se tem dito, tudo o que tem vindo a público têm um efeito altamente perturbador, sobretudo nas vítimas, em que elas pensam que estão novamente a duvidar delas. É preciso mudar a cultura do clericalismo, da defesa da instituição, da reputação da instituição, para nos centrarmos nas vítimas. Esse é um primeiro passo importantíssimo, que deve ser afirmado de forma convincente, genuína, humana. Falta humanidade na mensagem, eu sou católica praticante e não vejo Cristo.

Flor de Lis – Nota-se que as pessoas estão a contar a verdade nos seus testemunhos?

Ana Nunes de Almeida – É uma dor sentida, foi por isso que nós colocámos os testemunhos no relatório. Já reparou que se discutem percentagens, mas que ninguém coloca em causa os testemunhos? Tem detalhes de como, por exemplo, as vítimas descreveram os seus abusadores. Os psiquiatras ficavam impressionados como se recordavam dos detalhes. Acho o trabalho da Comissão importantíssimo, já devia ter sido criada há mais tempo. A nossa função era fazer um estudo, não era seguir e acompanhar as vítimas. Muitas destas vítimas continuam a contactar connosco, era impossível não fazer isso porque é desumano. Demos orientação a muitas delas, porque as pessoas não têm onde se dirigir. Nós estávamos conscientes durante o estudo que o relatório iria desinquietar, perturbar, transtornar o quotidiano de imensas vítimas…. Das que falaram, mas também das que não falaram e que com todas as lembranças sentem agora uma dupla culpa, porque não conseguiram fugir, porque não tiveram a coragem dos outros para contar o seu caso. 

Flor de Lis – Que acompanhamento é necessário?

Ana Nunes de Almeida – É necessária uma Comissão que funcione. Não tenho nada contra as Comissões Diocesanas, mas a avaliação que nós fizemos durante os meses do estudo é que muitas deles pura e simplesmente não funcionavam. Muitas delas demoravam muito tempo a responder. Uma vítima quando se dirige a alguém, tem que ter uma resposta. Nós tínhamos muito cuidado para responder no máximo em 24 horas. Nós não podemos perder uma pessoa que quer contar a sua história, porque é preciso tanta coragem que às vezes não há uma segunda vez. Essas comissões demoravam meses a responder e muitas das vítimas eram recebidas em tom de polícia judiciária “Tem a noção do que vai dizer? É muito importante dizer a verdade, não pode incorrer em difamações”. É tão intimadora esta abordagem… Tudo isto é legítimo, mas não é isso que se pode dizer na primeira abordagem, onde se tem que estar de braços abertos, dizer “estou aqui para ouvir, sem juízos, não tenha medo, não tenha vergonha”. A vergonha fica com o abusador, porque nós estamos aqui para ouvir, para abraçar e acolher. Portanto, é fundamental que exista essa Comissão que não só oiça os testemunhos, como depois possa encaminhar as denúncias.

Flor de Lis – Em relação ao Corpo Nacional de Escutas, que benefícios considera que o Escutismo Movimento Seguro poderá trazer para a estratégia de proteção de crianças e jovens?

Ana Nunes de Almeida – Acho importantíssimo. Vocês são dos raros casos que já têm um protocolo em prática, portanto acho que é muito mais difícil haver qualquer problema agora em relação ao que havia há 10 anos atrás. Não tenho dúvidas. Acentuaria talvez que é fundamental fazer um trabalho com as próprias crianças, ou seja, alertá-las para aquilo que é legítimo acontecer. Sobre o seu corpo, quais são os limites, o que é que um adulto pode ou não fazer. Porque as crianças têm que ser a sua própria defesa. Os pedófilos existirão sempre, estão onde as crianças estão, como é óbvio não vão estar num lar de idosos, não é? Portanto, acho que esta dimensão das crianças estarem conscientes dos seus direitos, não quer dizer que exista algum problema em alguém dar um beijinho ou fazer uma festa na cabeça, porque não podemos passar para o extremo. Trata-se de definir o que é ou não legítimo.

 

Flor de Lis – O que acha que o CNE pode fazer para capacitar ainda mais os seus dirigentes para agirem sobre este tema?

 

Ana Nunes de Almeida – Acho que devem discutir o relatório. Devem procurar organizar sessões com especialistas da área da infância, que vos possam falar destes casos. É evidente que o trabalho com as vítimas é fundamental. É também importante continuarem com o vosso trabalho de apoio às vítimas e insisto muito, falarem sobre dar aos vossos profissionais, aos voluntários do CNE, conhecimentos sobre a infância, sobre o que é uma criança. Sobretudo, sobre o desenvolvimento saudável de uma criança, do que ela precisa. Vocês têm muitas oportunidades para isso, mas também têm oportunidades de risco com as crianças, quando por exemplo, as levam para fora, em acampamentos e atividades que têm tudo para serem experiências maravilhosas, mas que podem ser situações de risco. Estas situações acontecem, não é? Não vale a pena pensar que não acontecem. O que diferencia as organizações é a forma como a qual elas lidam com as situações. Os protocolos que vocês têm disponíveis têm que os colocar em prática para lidar com as situações e estarem muito atentos aos sinais de alerta. Por outro lado, a prevenção, quando há a mínima suspeita devem dar atenção à criança. Deve dar-se atenção aquilo que a criança ou o jovem dizem. E claro, os jovens sentirem-se completamente à vontade, numa situação em que estão desconfortáveis para saberem que têm um porto seguro dentro do CNE.

Texto: Cláudia Xavier

Fotografia: Ricardo Perna

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