«O Escutismo para mim é uma espécie de guia»

Sara Pinto é jornalista e entra na casa de todos os portugueses através do Jornal das 8, da TVI. No Escutismo fez um longo caminho, passou pelos Exploradores, Pioneiros e Caminheiros. Viveu muitas aventuras, ganhou amizades para a vida, guardou memórias. Reconhece a importância que o movimento teve na sua vida e coloca a hipótese de um dia regressar ao ativo.  

Flor de Lis (FL) – Conta-nos um pouco do teu percurso no Escutismo.

Sara Pinto (SP) – Faço parte da equipa fundadora do Agr. 1173 Fornos, Marco de Canaveses, fiz parte do primeiro grupo de Exploradores do agrupamento. Já há muito tempo que havia a vontade de criar um agrupamento de escuteiros em Marco de Canaveses, porque recebíamos lá na paróquia outros agrupamentos, portanto, já era normal para nós, que fazíamos parte do grupo de jovens e da catequese da paróquia, ver e observar todo esse dinamismo do Escutismo. Houve um grupo então ligado à paróquia que decidiu avançar com a fundação de um agrupamento lá. Desse grupo fazia parte a minha irmã mais velha, que integrou a primeira equipa de Chefes do Agrupamento, e eu também, obviamente, quis fazer parte. Na altura, havia dúvidas se iríamos avançar só com os Lobitos, e eu fiquei supertriste porque já não tinha idade para os Lobitos, mas entretanto quando decidiram que iriam inaugurar o agrupamento com Lobitos e Exploradores, automaticamente iniciei o processo de adesão, e a minha promessa foi feita no dia em que foi inaugurado o agrupamento.

FL – Que idade tinhas nessa altura?

SP – Acho que tinha 12, 13 anos… Já não me recordo muito bem, mas teria por aí essa idade. Começou aí o caminho e depois fiquei até aos Caminheiros, até à faculdade. Nos primeiros dois anos de faculdade ainda estava bastante ativa no agrupamento, depois, entretanto, fui estudar para fora, em Erasmus, nesse ano já não estive tão presente, e depois também comecei a trabalhar, comecei a fazer um estágio já ligado à minha área, na televisão, e infelizmente deixei de ter disponibilidade e acabei por sair do ativo.

FL – Com muita pena?

SP – Sim, com muita pena… Porque tinha lá grandes amigos! Alguns ainda ficaram e hoje em dia já são chefes, fizeram o seu percurso até fazerem parte da equipa de chefes, e tenho muita pena de ter perdido essa dinâmica… Depois, aqui em Lisboa, nunca consegui voltar a recuperar, porque o trabalho também não deixou… 

FL – Não é fácil conciliar tudo, não é?

SP – Muito menos agora com dois pequenitos… Agora, quem sabe, quando eles crescerem, quem sabe se não os acompanho nesse caminho! 

FL – Sara, existe algum momento especial de que te recordes dos escuteiros? Algum episódio mais engraçado?

SP – Tenho vários! Foram mesmo bons tempos, tínhamos sempre muitas aventuras! O acampamento de verão era sempre muito esperado por todos… O momento da Promessa foi muito especial, não é? Porque lá está, eu queria muito fazer parte do movimento, esse momento em que vimos que estava mesmo a acontecer! Que era real fazer parte de um agrupamento de escuteiros, que aquilo depois ia passar a ser o nosso dia a dia, todos os fins de semana iam ser passados ligados ao Escutismo… Esse momento foi muito especial! E depois tive vários, a parte do acampamento de verão era sempre muito esperado, com muita expectativa, porque como eu sempre fiz parte do grupo dos mais velhos, porque comecei com os Exploradores, e depois fui eu e o meu grupo explorador que fomos abrir os Pioneiros. E depois os Caminheiros também…. Então também tínhamos sempre aquela responsabilidade de sermos os mais velhos e não só de dar o exemplo, mas também grande parte das atividades de construção do campo passavam por nós. Era sempre muito entusiasmante ver com o resto da equipa o que íamos fazer de diferente naquele ano: seja uma elevação para pôr as tendas, um pórtico de entrada, um altar onde depois celebrávamos a missa no último dia do acampamento, montar o campo dos mais pequenos… Isso era a nossa responsabilidade. Era muito divertido fazer coisas diferentes todos os anos. Tenho essas recordações na minha memória, os desafios a que nos propúnhamos!

FL – Mais algum momento especial?

SP – Foram tantas atividades, porque nós participávamos em tantas atividades. Participávamos em atividades ligadas à Região do Porto. Lembro-me de que das primeiras atividades que tivemos enquanto agrupamento foi um São Jorge… Era uma espécie de peddy papper pela cidade do Porto e choveu torrencialmente nesse dia, e nós estávamos desprevenidos, não tínhamos chapéus de chuva, nem impermeáveis, então improvisámos com sacos do lixo, e lembro-me de que o nosso agrupamento quase ficou conhecido como o agrupamento do saco do lixo! Porque andámos todos com sacos pretos pela cidade do Porto! Era engraçado, às vezes, algumas coisas, que para os miúdos por vezes pode ser mais constrangedor, mas como estávamos em equipa, e todos juntos, aquilo acabava por ser uma grande animação! Acho que é sobretudo isso que recordo do meu tempo de escuteira, tudo servia para momentos animados, inclusive alguns momentos mais complicados.

Este talvez seja dos principais momentos que eu guardo desse período: a primeira vez que andei de avião foi numa atividade dos escuteiros. Nós queríamos muito ir à ilha da Madeira, fazer a subida ao Pico do Areeiro. Então propusemos essa atividade no arranque do ano, em que falávamos das várias tarefas e sobre as várias ideias que tínhamos. Esse ano, fizemos essa proposta à direção do agrupamento e disseram: «Então muito bem, nós concordamos, mas têm de arranjar dinheiro para isso, não é? Arranjar dinheiro, elaborar o vosso plano de atividades, tudo.» E realmente andámos muito tempo com muitas atividades de angariação.

FL – E conseguiram? Foi em que secção?

SP – Foi ainda nos Exploradores. Conseguimos o dinheiro, tudo impecável. Lá estávamos no dia da viagem no aeroporto do Porto prontos para embarcar. Era um voo tardíssimo, que chegava ao Funchal à meia-noite. Nós todos entusiasmados por irmos andar de avião a primeira vez, um espetáculo! Houve alertas de mau tempo o dia todo, e nós nem queríamos acreditar, nem nos passava pela cabeça que não… Ia correr tudo bem, nós todos entusiasmados… Lembro-me de que na altura só duas colegas é que já tinham andado de avião, do grupo todo de Exploradores. Eu nunca tinha andado de avião, foi a primeira vez que andei. E, portanto, tudo o que entretanto aconteceu, eu achava que era normal. Foi um voo terrível, cheio de turbulência, estava muito mau tempo! Na altura, a pista da Madeira já tinha sido ampliada, menos mal! Mas aquilo também era de noite, nós nem víamos nada cá para fora! O voo foi mesmo terrível, aconteceu de tudo… Estava já toda a gente a começar a sentir-se mal, com pânico, com ansiedade, porque realmente a turbulência era muita, e lá está eu achava que tudo aquilo era normalíssimo, nunca tinha andado, era assim! Já estava um senhor, que não era do nosso agrupamento, que se tinha sentido mal, deitado no corredor do avião, ouvimos a célebre mensagem «há algum médico a bordo?», o senhor já estava a receber oxigénio, e as nossas duas amigas que eram as únicas que já tinham andado de avião, e que sabiam que aquilo não era assim, que nunca tinham passado por nada do género, também começaram com ataques de ansiedade. Às tantas, depois de inúmeras tentativas para aterrar no Funchal, fomos aterrar a Porto Santo, porque era impossível aterrar no Funchal. Eu, entretanto, já andei muitas mais vezes de avião, eu nunca na minha vida tive uma aterragem igual àquela, foi terrível, quase que o trem de aterragem partia. Estavam ambulâncias já na pista, para o senhor que se tinha sentido mal e que estava desmaiado a receber oxigénio, para as minhas duas amigas que estavam com ataques de pânico. Eles os três saíram e foi uma Chefe na altura com elas, e nós como não podíamos ficar no aeroporto de Porto Santo, porque estava a abarrotar, havia uma data de aviões que tinham estado a aterrar ali durante o dia, precisamente por causa do mau tempo, então tivemos de voltar para trás, para o Porto… Nisto já eram umas 3 da manhã! As minhas duas amigas ficaram lá, passaram a noite no Centro de Saúde de Porto Santo, a receber uns tranquilizantes, nós voltámos todos para trás, na altura quase ninguém tinha telemóvel, e, entretanto, no dia a seguir não conseguimos voo, fomos todos recambiados para casa. Chego a casa, de manhã, e a minha mãe diz «O que é que estás aqui a fazer?! Não era suposto vocês estarem todos na Madeira?», eu disse «Ah, pronto… O voo não correu muito bem, mas vamos amanhã outra vez!» Ou seja, aquilo foi uma grande aventura! Em vez de fazermos dois voos, acabámos a fazer Porto – Porto Santo, Porto Santo – Porto outra vez e depois o voo que conseguimos de regresso novamente para a Madeira teve de ser com escala em Lisboa, portanto escala em Lisboa, novamente para o Funchal, foi um grande passeio! E enquanto isso, as nossas duas amigas Exploradoras que ficaram em Porto Santo, andavam na praia! Já estavam boas, já lhes tinha passado o ataque de pânico e nós andávamos nestas viagens para trás e para a frente, elas estavam a aproveitar a praia, todas contentes. Depois seguiu-se a nossa aventura no Pico do Areeiro, no Funchal, que começou uns dias depois, mas foi muito divertido! É um momento que eu guardo assim especialmente na minha memória, porque realmente foi uma aventura muito engraçada! 

FL – Foi mesmo uma aventura! Sara, depois, ao longo da tua vida, sentiste alguma vez que o Escutismo te deu boas ferramentas para enfrentares a vida profissional ou outro desafio?

SP – Sim. O que eu estava a contar desta atividade na Madeira, de ter de programar, aquilo que é traçar objetivos: nós precisamos disto, vamos nestes dias, neste e naquele dia vamos fazer esta atividade, por isso vamos falar com esta associação ou com aquela para percebermos como é que podemos fazer, ou seja, esta capacidade de organização, seja em organização em eventos, seja trabalho em equipa, acho que foi muito bom ter praticado isso, porque auxiliou-me muito, quer na minha vida, quer na faculdade, quer também agora na minha vida profissional. Sempre que tenho de fazer algo do género, obrigo-me a ser metódica, com capacidade de organização, com capacidade de liderança também… Eu nos Exploradores era Guia da minha patrulha, éramos as Chitas!

FL – Era uma patrulha só de meninas?

SP – Sim, só de meninas. Eu era Guia dessa patrulha e, portanto, tinha muito essas funções de organização e isso acho que me ajuda muito, não só na minha vida profissional, mas até na minha vida pessoal. Acho que nesta correria que é o nosso dia a dia, enquanto adultos, em que nos temos de desdobrar em mil e uma coisas, seja na atividade profissional, seja na maternidade, como agora, seja na vida quotidiana de casa, acho que essa capacidade de organização que eu pratiquei enquanto estive nos escuteiros me tem ajudado muito na minha vida.

FL – E como é que surge a tua vida profissional? Quando é que descobres que é no jornalismo que querias fazer carreira? O Escutismo ajudou na decisão?

SP – Não foi nos escuteiros que eu descobri essa vontade. Foi mesmo no meu seio familiar, porque havia muito o hábito de vermos as notícias em minha casa à hora de jantar. O meu pai, para ele era sagrado, à hora de jantar estar a ver o jornal, portanto habituei-me desde muito nova a ver as notícias, e gostava de perceber sempre um bocadinho mais. Há assuntos muito complexos, que quando somos miúdos não percebemos, e foi esse gosto por tentar perceber aquilo que eu via na televisão que me levou até ao jornalismo. E realmente desde miúda que tive essa vontade, mas depois nos escuteiros também consegui pôr em prática algumas ferramentas ligadas ao jornalismo, porque é muito comum nós participarmos na elaboração seja de boletins noticiosos do agrupamento, a Flor de Lis, já o disse, recebia sempre em casa e tinha sempre o hábito de ler, daí também este prazer de estar a falar convosco, e muitas vezes nas atividades dos escuteiros são temas que são abordados: os media, a rádio, a televisão, fazer um programa de rádio ou fazer um programa de televisão. Portanto, também tive oportunidade de nos escuteiros pôr em prática este gosto pelo jornalismo. Como disse, vem desde miúda, sempre tive na cabeça que era isso que queria, portanto foi sempre a minha primeira opção na faculdade, e depois desde que entrei para a faculdade tive a sorte de poder estar sempre a trabalhar ligada à área. 

FL – Se tivesses de encontrar uma palavra para descrever o Escutismo e o papel que ele teve na tua vida, qual é que seria?

SP – É uma pergunta difícil… Não sei se consigo traduzir isso numa palavra, porque lá está, foram tantas as áreas da minha vida em que o Escutismo foi importante, pelas amizades que tive, pelas boas práticas e pelos bons ideais que o Escutismo me forneceu… Talvez aqui que a palavra «guia» possa abranger muito daquilo que o Escutismo representa para mim. O caminho do Escutismo, para mim, foi um guia em relação aos meus bons valores e é tendo como base esses valores que tento levar a minha vida, seja pessoal, seja profissional. O Escutismo para mim é uma espécie de guia. 

FL – Se tivesses de dar um conselho a algum jovem que saia agora da universidade e que é escuteiro, que conselho é que poderias deixar? Achas de facto que o Escutismo pode ter influência na vida profissional?

SP – Acho que sim, porque nós aprendemos muito a trabalhar em equipa e hoje em dia, apesar de muitas profissões serem desempenhadas a partir de uma secretária sozinhos em casa, vamos sempre precisar de interação com os outros e, portanto, essa interação com os outros que o Escutismo nos permite ajuda, sem dúvida, no nosso percurso profissional. 

FL – O CNE está a comemorar o seu Centenário. Que palavras gostarias de deixar em relação a isso?

SP – Talvez obrigada. Porque acho que o Corpo Nacional de Escutas tem tido um papel muito importante na vida de tantos jovens, teve na minha, e acho que um agradecimento é sempre bom, e nesta altura do centenário é uma boa oportunidade para dizer obrigada!

Texto: Cláudia Xavier

Fonte: Lusa; Renascença e Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares

Fotografias: Matilde Gonçalves

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