«Os escuteiros para mim foram a chave daquilo que eu sou hoje»

O Francisco Mendes começou o seu percurso no Escutismo com 11 anos. Descobriu no Escutismo a sua verdadeira vocação, após um curso de liderança para Guias de patrulha. Licenciou-se em Psicologia das Empresas e das Organizações, e grande parte do trabalho é ajudar as pessoas e as empresas nos seus processos de desenvolvimento, algo que, admite, aprendeu nos escuteiros. No meio da sua vida agitada, encontra ainda tempo para um hobby que leva muito a sério: a fotografia.

Flor de Lis (FL) – Conta-nos um pouco do teu percurso no Escutismo.

Francisco Mendes (FM) – Eu entrei nos escuteiros em 1986, diretamente para os juniores, hoje Exploradores. Entrei com 11 anos, já o meu pai e o meu irmão estavam nos escuteiros, e foi uma entrada facilitada por isso. O grupo era muito novo, havia poucos miúdos ainda, duas patrulhas, um grupo muito novo… Depois fiz o meu trajeto nos Exploradores, passei para os seniores na altura – acho que apanhei ali no fim a designação “Pioneiros” –, para os Caminheiros, e estive alguns anos nos Caminheiros. No segundo ano de Caminheiro, estive a trabalhar com os Pioneiros, a ajudar, porque havia a necessidade de existir um segundo Dirigente. Depois, fiz uma colaboração com a Junta Central, na altura a trabalhar no departamento pedagógico, com o Chefe Carlos Mana. Fiz algumas colaborações como fotógrafo na Flor de Lis, nos calendários, e fui fotógrafo em dois acampamentos, um nacional e um regional, e alguns trabalhos de fotografia com escuteiros. Fiz o CIP, ainda fui Dirigente, mas depois, com 26, 27 anos, acabei por sair dos escuteiros. Mantive-me sempre em contacto, porque o meu pai e a minha mãe continuaram no agrupamento, em Benfica, e agora a minha filha também está. Às vezes, faço algumas formações nos escuteiros, quando me pedem.

FL – E porque é que saíste dos escuteiros?

FM – Por incompatibilidade de horários. Faço consultadoria de recursos humanos, muito exigente em termos de disponibilidade e de horários. Depois, a prática do desporto, eu joguei voleibol federado durante 12 anos, era muito difícil conciliar tudo… Em seguida surge a família, os filhos, e fica difícil de conciliar tudo… Os escuteiros acabou por ser o mais óbvio de largar e não estar.

FL – Como é que começa a tua vida profissional? Sentiste em algum momento que o Escutismo te deu alguma ferramenta para alavancar esse percurso?

FM – Eu diria que isto para mim é muito óbvio: os escuteiros, para mim, foram a chave daquilo que eu sou hoje, daquilo que foi o meu percurso profissional. Eu sou psicólogo de formação, das organizações/empresas, faço o curso e estou a trabalhar nas empresas, mas decidi que queria trabalhar nesta área nos escuteiros, num curso que fiz na altura, de liderança para Guias de patrulha. Gostei muito do curso e pensei: «Gostava de fazer isso um dia.» E foi aí que comecei a pensar nessas áreas, no trabalho de desenvolvimento de pessoas e comportamental. Diria que o meu percurso profissional sempre foi alavancado por coisas que eu fiz nos escuteiros. Grande parte do que faço hoje é ajudar as pessoas e as empresas nos seus processos de desenvolvimento, e isso eu também aprendi nos escuteiros, na verdade! As empresas, se nós pensarmos, estão muito alicerçadas no método escutista: o número de pessoas que reportam à sua chefia, os cargos, as funções, os papéis…

FL – E em termos das ferramentas sociais, não é?

FM – Tudo isso está alavancado nos escuteiros! Eu não consigo sequer desassociar na minha vida aquilo que foi a minha experiência da vida de escuteiro do que foi a minha experiência da vida profissional. Essa é a verdade.

FL – Em algum momento da tua vida achaste que o Escutismo fez mesmo a diferença? Há algum exemplo em concreto que consigas dar?

FM – A mim aconteceu-me várias vezes em entrevistas as pessoas que me estavam a entrevistar falarem de experiência e eu falar dos escuteiros, e as pessoas dizerem: «A sério? Que giro, eu também fui!» Então, nessas entrevistas, eu pensei claramente que os escuteiros fizeram mesmo a diferença, porque havia uma ligação inequívoca e muito fácil de desenvolver. Toda a minha vivência de gestão de conflitos, liderança – fui sempre Guia das minhas patrulhas, equipas, clã, tive sempre cargos de liderança. A verdade é que o Escutismo permitiu que eu desenvolvesse algumas skills sociais para fazer aquilo que eu faço na vida: gerir equipas, ter trabalhado com pessoas muito diferentes de mim, em diferentes papéis, e ter gostado e tirado partido dessa experiência dos escuteiros para a minha vida profissional.

«Quando as pessoas põem intensidade nas coisas, se oferecem, acho que as coisas acontecem sempre de forma diferente»

 

FL – Já foste responsável pela contratação de alguém em contexto profissional? Dirias que existem diferenças entre um escuteiro e alguém que nunca foi escuteiro?

FM – Gosto muito dos escuteiros, mas não consigo dizer se há essa diferença, porque há muitos não escuteiros que têm muito bom espírito e há escuteiros que não têm. Apesar de tudo, consigo dissociar uma coisa da outra. O que eu sinto é que há de facto um ADN que os escuteiros têm de fazer as coisas, pôr as mãos na massa, de olhar para os problemas de uma forma diferente, isso eu noto. Acho que nós (escuteiros) conseguimos olhar para as coisas com a distância de «é possível fazer» e «isto vai acontecer». Não sei se isto é um contributo de quem vem dos escuteiros, mas quem trabalha muito próximo, quem acampa muitas vezes, quem faz muitas noites de campo, quem tem essa experiência muito vivida, que é o meu caso – eu passei anos que não faltava uma vez aos escuteiros. Vivi muito essa experiência muito próxima. Acho que mesmo nos relacionamentos interpessoais isso se nota. Acaba por ser relativamente fácil a relação entre as pessoas. Claro que também há não escuteiros que têm essas capacidades e também há escuteiros que têm menos, não é? Eu sinto isso, a forma de olhar para os problemas, de pensar na solução, como se resolve… Acho que as pessoas têm aqui um traço em comum.

FL – Voltando ao Escutismo, há algum episódio que te tenha marcado? Algum de que te lembres?

FM – Acho que a minha entrada no Clã foi um momento muito marcante… Éramos duas equipas muito recentes, com pessoas muito novas. Foi preciso quase criar do zero, havia uma tradição de Clã quando entrámos, mas no nosso ano foi praticamente quando o Clã recomeçou. Tenho ideia de que esses foram momentos muito marcantes: foi preciso liderança, pegar nas equipas, crescer, fazer acontecer. Lembro-me dessa altura com especial carinho. Obviamente que também me marcou a minha entrada nos Exploradores, porque era muito novo, tinha 11, 12 anos. Lembro-me de um acampamento nacional, em que no último dia não tinha roupa limpa, então vim para casa com roupa suja… São coisas que nos marcam, obviamente. Recordo-me de um raide nos Pioneiros, regional, muito duro, em que éramos só quatro pessoas da minha equipa, passámos algumas dificuldades e recordo-me de algumas conversas que tivemos no caminho, coisas muito duras, porque era muito exigente fisicamente. Depois, noites de campo, chuva torrencial na Suíça, em Belas, por exemplo, apanhei uma vez uma tempestade gigante… Tudo isso são experiências que nos marcam e ficam para a vida!

FL – Qual foi a melhor atividade da tua vida?

FM – Foi Kandersteg, apesar de ter feito muitas atividades, foi a que adorei mais. Recordo-me de ter acampado em São Jacinto com o agrupamento, gostei muito, tive dezenas de noites … Mas acho que a experiência de que mais gostei particularmente foi Kandersteg, porque foi em primeiro lugar uma experiência internacional e depois porque foi vivida com um Clã muito interessante, com muita vida.

FL – Se tivesses de dar um conselho aos jovens que estão agora a ingressar num percurso profissional, qual seria?

FM – Divirtam-se. Durante muitos anos era eu que animava os fogos conselhos no meu agrupamento, e acho que isso acaba por marcar muito, porque és obrigado a divertir-te e a divertir os outros. Acho que isso também me marcou. Ou seja, eu falo muito em público e acho que ganhei esses skills também daí, de ter de animar fogos conselho e de ter de falar para muita gente, fosse no nosso grupo ou às vezes para a comunidade local, quando íamos acampar. O conselho que eu dou é: divirtam-se, façam as coisas com gosto e divirtam-se o máximo que puderem. Eu sinto mesmo que o que faz a diferença nas coisas é o amor que se põe nelas. E, portanto, eu acho que se as pessoas puserem essa vontade, esse amor, esse gosto pelas coisas, é o que faz mesmo a diferença. E isso é verdade quando um jovem faz alguma atividade, quando um chefe acompanha um jovem, quando um pai acompanha uma criança, quando um amigo acompanha outro amigo… Tudo isso o que faz realmente diferença é o amor que se põe nisso. Divirtam-se e ponham amor nas coisas.

FL – O CNE está a comemorar o seu centenário. O que tens a dizer sobre isso?

FM – Eu espero que seja um momento importante para o CNE, que se recrie, porque acho que hoje em dia os miúdos têm muitos estímulos e é preciso encontrarmos formas de trazer para estes miúdos a experiência de Natureza, de socialização, de proximidade com os outros, de partilha, de entrega. Portanto, acho que o CNE, como todas as outras associações juvenis, tem de se reinventar para conseguir corresponder dessa maneira. Espero que o CNE consiga de facto dar esse salto. Acho que as gerações já não voltam para trás, isso é o mais certo que nós temos, têm de ser as associações, mantendo os valores que têm, a criar espaços para as novas gerações. Quero também deixar uma palavra para os Dirigentes, que dão do seu tempo para estarem na associação, de forma voluntária… Muitas vezes as pessoas nem têm essa noção, acham que não é assim, e eu diria que me parece também importante que os Dirigentes tenham também a capacidade de, mantendo os valores, criar espírito de flexibilidade e de enquadramento, de conteúdos diferentes, para miúdos novos, com perspetivas diferentes. Nós também tivemos na nossa altura, eles também têm agora.

FL – E se tivesses de escolher uma palavra para descrever o Escutismo, qual é que seria?

FM – Intensidade. Porque me parece que é a forma de viver o Escutismo, com intensidade. Há pouco eu falava sobre as pessoas colocarem amor nas coisas, quando as pessoas põem intensidade nas coisas, se oferecem, acho que as coisas acontecem sempre de forma diferente. Acho que só assim é que faz sentido.

FL – Como surge a fotografia na tua vida?

FM – Eu em fotografia faço projetos de responsabilidade social, ou seja, ofereço fotografias, ou em contexto de famílias ou em contexto de projetos, mas sempre numa lógica de responsabilidade social. Faço calendários para pagar tratamentos a miúdos, fotografo-os para pagar os tratamentos, faço parte de uma equipa que fotografa famílias em bairros desfavorecidos. Todos os projetos que faço em fotografia são sempre para oferecer a alguma associação ou alguma coisa desse género. Comecei a fotografar nos escuteiros, tinha um colega com uma máquina e comecei a achar muita graça. Comprei uma máquina e comecei a fotografar com ele, nas atividades, e foi assim que comecei a fotografar. Para teres ideia, atualmente tenho uma coleção de 150 máquinas fotográficas. E foi aí que nasceu! Além disso, quando saí dos escuteiros, deixei de fazer responsabilidade social, como é normal, deixamos de fazer. Houve então um dia que me lembrei de juntar a fotografia à responsabilidade social, fiz uma exposição e o dinheiro das fotografias que leiloei e vendi foi para uma associação, a Ajuda de Berço. Depois fiz um segundo projeto de fotografias, uns retratos, e também ofereci à Casa da Criança de Tires. A partir daí, todo o trabalho que fiz foi neste sentido. Felizmente, tenho a minha profissão, gosto muito do que faço. Praticamente é um hobby que eu levo muito a sério, que criei para continuar a missão de ajudar os outros, a comunidade. Há uma coisa que eu às vezes digo, até mesmo em contexto de formação: eu acho que, se as pessoas fizerem responsabilidade social dos seus talentos, toda a gente ganha. Por exemplo, se uma pessoa gostar de fazer bolos e pensar «uma vez por mês vou fazer um bolo e oferecer a uma associação para que eles possam vender e fazer dinheiro». A pessoa obriga-se a fazer o que gosta, isso serve a alguém, e na verdade todos ganham com esse processo. Eu na fotografia foi exatamente igual: se não tiver uma razão para fotografar, provavelmente não vou fotografar. Então o que faço habitualmente são projetos que eu sei que me ocupam algum tempo, mas que são preparados, planeados, mas que me permitem fotografar, oferecer esse trabalho a alguém e trazer mais pessoas para o conceito que é: se as pessoas colocarem os seus talentos ao serviço da comunidade, todos ganham. E isso nasceu nos escuteiros.

Texto: Cláudia Xavier

Fotografias: Francisco Mendes, Gonçalo Pinto

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