«Acredito que o Escutismo nos prepara para a vida»

A Berta Montalvão tem 42 anos e tem mais de 15 anos de experiência na área dos Recursos Humanos. Trabalha atualmente em Timor e já passou por Angola. Foi escuteira durante oito anos e acredita que essa experiência a preparou para a vida profissional. Procurámos responder à pergunta: Os escuteiros estarão em vantagem no mercado de trabalho?

Flor de Lis (FL) – Concordas que o Escutismo influencia a nossa vida profissional?

Berta Montalvão (BM) – Concordo totalmente. Pensei nisso ao longo da minha vida quer em Portugal e depois, quando vivi em Angola, e também em Timor (onde estou agora), fui-me sempre cruzando com escuteiros, e é engraçado porque quando vamos partilhando as nossas aventuras, as nossas experiências, enquanto escuteiros, todos nós concordamos de certa forma, que a bagagem que trazemos da nossa juventude, muito por causa do Escutismo, acaba por ter um grande impacto, quer na nossa vida adulta como na nossa vida profissional. Eu tenho um background de recursos humanos, vejo essa influência do que são os valores, seja a liderança, trabalho em equipa, disciplina – porque ela é necessária para trabalharmos em comunidade – no espírito de “desenrasca”, que em mercados como Angola e Timor é sempre necessário. Como não temos tudo disponível, temos de estar sempre a reinventar-nos e a utilizarmos as ferramentas que temos mais à mão. Acredito mesmo que os valores e tudo aquilo que eu aprendi no Escutismo me permitiram ser a pessoa que eu sou hoje.

FL – Falámos do teu percurso profissional.

BM – A minha saída do Escutismo está ligada à minha carreira profissional, porque emigrei. Fui do Agr. 63 Graça, de Lisboa, e possivelmente se tivesse ficado em Portugal teria continuado ligada ao Escutismo, teria feito o curso de Dirigente, porque tinha um grupo de amigos que fez esse caminho. Pela decisão de carreira que tomei não foi possível. Licenciei-me em Gestão de Recursos Humanos, tive sempre a sorte de trabalhar na área, e quando terminei o estágio profissional em Portugal a empresa onde estava convidou-me para participar num projeto em Angola, com a duração prevista de dois meses, mas que se transformaram em cinco. A verdade é que quando regressei a casa foi para fazer as malas e voltar para Luanda, onde fiquei 13 anos. Esta experiência não foi planeada, foi surgindo enquanto eu fui conhecendo o país, fui gostando culturalmente e os projetos e as oportunidades foram aparecendo e eu fui ficando. Essencialmente fiquei dez anos como consultora de recursos humanos onde desenvolvi projetos de consultoria para empresas do setor privado angolanas, do oil and gas, das telecomunicações, da construção e dos transportes. Estamos a falar de definição de políticas de recursos humanos, de toda a área de desenvolvimento de talento, recrutamento e seleção, a formação , desenho de programas de desenvolvimento de carreiras, programas e modelos de avaliação de desempenho, estudos salariais, tudo o que é políticas de compensação e benefícios… Eu diria que, de uma forma geral, eu trabalhei em todas as áreas de recursos humanos que há para trabalhar. Em 2015 fui convidada pela Eng. Isabel dos Santos para ser a colaboradora n.º3 num projeto na área do retalho e não retalho, como Diretora de Recursos Humanos, foi a minha primeira experiência fora da consultadoria. Ao fim de umas semanas descobri que não ia ser só diretora, mas iria fazer parte do board (Conselho de Administração), aos 34 anos, numa fase tão cedo da minha carreira. Isso obrigou-me a crescer muito mais rápido, por causa do nível de exigência, porque se não sabia constituir uma empresa de raiz, muito menos fazer parte de um board.

FL – E o espírito de iniciativa que o Escutismo acaba por transmitir ajudou-te nesse momento?

BM – Teve de ser. O espírito de iniciativa, a curiosidade, o não desistir. Quando fazíamos os raids era muito fácil desistir e voltar para trás. Mas não voltei para trás e soube pedir ajuda. E o desafio foi trabalhar num setor onde nunca tinha trabalhado. O retalho parece relativamente simples, mas imagina o que é recrutar uma pessoa sem saber quais são os skills que essa pessoa tem de ter, todo o conhecimento que eu tinha era de senso comum “eu acho que um operador de caixa deve ter isto”, “eu acho que um chefe de secção faz isto”, mas depois começam a surgir as especificações técnicas que eu não sei nada. Houve um colega que me ajudou, que me deu um dicionário da área, então era eu a fazer entrevistas com o dicionário ao lado. Tive sempre o bom senso e a humildade de pedir a alguém da área para fazer as entrevistas comigo. Aqui o espírito de equipa, o pedir ajuda, o partilhar também as experiências e o conhecimento, porque eu tinha o conhecimento das componentes mais técnicas de como conduzir uma entrevista mas depois falta-me a componente sectorial. Essa parte foi de facto muito importante na minha carreira. Foi muito desafiante, enriquecedor e trabalhoso, foram 16 horas por dia. Essa experiência durou três anos porque começou a tornar-se uma rotina, e como já não havia um projeto desafiante, fiz coincidir a minha saída de Angola com o fim do projeto. Saí sem projeto em 2018, porque queria mesmo descansar. Tirei um ano sabático, que ficou resumido a meses meses, porque aquele bichinho de querer trabalhar e estar parada já me estava a fazer confusão. Tive sempre ocupação porque passei o tempo a viajar: comecei em África, fiz alguns países da Europa e depois Ásia. E num retiro que fiz na Tailândia decidi ir até Timor, não ia aguentar ficar um ano em casa sem fazer nada. Escolhi Timor porque sou lusodescendente e já tinha vindo a Timor em 2010, que foi quando obtive a minha outra nacionalidade, pela minha mãe, e vim em 2018 a convite da União Europeia, por recomendação do José Ramos-Horta, que na altura já não estava na política, mas já era Nobel da Paz, para eu participar na principal conferência que a União Europeia desenvolveu desde que está em Timor, sobre liderança. O meu testemunho foi dar a conhecer a minha carreira aos timorenses, sempre com sala cheia, numa perspetiva de dizer que «eu, como timorense, se consegui desenvolver uma carreira, vocês também conseguem». Numa perspetiva de motivação, porque Timor esteve sob ocupação da Indonésia durante 27 anos, é independente há 21 anos e as pessoas aqui não têm ambição e durante muitos anos não tinham sequer esperança. Hoje o país sofre todas as consequências dessa ocupação. Foi um evento muito interessante que se tornou num evento lusófono, esteve a Sara Tavares, pessoas vindas do Brasil, Cabo Verde, de todos os países da Lusofonia.

FL – E a partir daí?

BM – Foi a partir dessa altura que pensei que gostaria de fazer algo por Timor. A verdade, é que ao fim de três semanas em Timor eu já estava a trabalhar, constituí a minha própria empresa na área da consultadoria na área dos recursos humanos. Timor apresenta uma grande debilidade na área dos Recursos Humanos, temos um grande défice de pessoas qualificadas e com as competências para trabalhar nas empresas. O que para mim constitui uma oportunidade de continuar a trabalhar nesta área.  Por causa da experiência que fui adquirindo, convidaram-me para fazer parte da Confederação Empresarial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em representação de Timor. São nove países da CPLP para promover todo o setor privado.

«Temos formas de estar muito próprias»

FL – Apesar da tua experiência ser essencialmente em outros países, já contratas-te algum escuteiro?

BM – Contratar não, mas já trabalhei em parcerias de negócio.

FL – Notas que de facto existe diferença entre alguém que é escuteiro e alguém que não é escuteiro e nem sabe o que é o Escutismo?

BM – De uma forma geral diria que não, mas nós (escuteiros) temos formas de estar muito próprias. Não posso dizer que só pelo facto de seres escuteira tens uma certa conduta, ética ou perfil… Não concordo, mas os valores, a essência está lá. Quando és escuteira e tens alguém ao lado que também é, muitas vezes dizemos “Isto é por causa dos escuteiros!” ou “Isto fez-me lembrar os escuteiros!”. Acho que de facto não influencia diretamente o perfil, porque existem outros fatores que influenciam a pessoa que nós somos, mas por vezes se eu estou perante uma situação que me faz lembrar o Escutismo, a outra pessoa ao lado também tem o mesmo feeling. Isso já me aconteceu várias vezes. Contratar não, só mesmo em convivência com pares ou parceiros de negócio.

FL – Facilita muito em termos de trabalho, ou não?

BM- Sim. A linguagem, a adaptação, a tal experiência que nos faz lembrar o Escutismo, acabamos por rir das mesmas piadas!  Em Angola e em Timor conheci escuteiros em posições hierárquicas diferentes mas que depois o mindset é exatamente o mesmo. Por exemplo, em Timor, onde estou atualmente, trabalhei com uma pessoa que foi Primeiro-Ministro e Ministro da Saúde que é escuteiro e atualmente é dirigente. Há momentos e situações acima de tudo, que ele como médico, muito da solidariedade, do apoio ao próximo, de dar e partilhar. Estes valores levaram-no a criar uma associação sem fins lucrativos para promover a saúde pública dos timorenses mais carenciados. Eu sei que ali, para além de ele ter o seu cunho de médico, tem também o cunho do Escutismo. Apesar de não o ter contratado, trabalhámos em projetos, e sei que há ali uma linha que nos une pelo facto de termos sido escuteiros. 

FL – Escolherias um candidato pelo simples facto de ser escuteiro?

BM- Eu sou de Recursos Humanos, por isso tenho toda uma carreira profissional muito longa a olhar para as competências. Porventura, eu iria tentar aprofundar mais as competências não só profissionais mas também provenientes do Escutismo. Acho que a minha profissão me dá essa valência. A minha decisão não poderá ser apenas por isso, porque não estaria a ser correta. Poderia ser algum fator preferencial, mas aí estaria a influenciar o resultado, o que seria muito subjetivo. Mas poderia dizer que tenderia a simpatizar mais com uma pessoa que tivesse frequentado os escuteiros do que outra pessoa que não tivesse frequentado. Lá está, é porque eu acredito que o Escutismo nos prepara para a vida e eu consigo olhar para as crianças e ver a diferença em termos de comportamento, das atitudes e pela forma de estar perante os outros.

«Tenho orgulho em dizer que também fui escuteira»

FL – Apesar da tua experiência ser essencialmente em outros países, já contratas-te algum escuteiro?

BM – Contratar não, mas já trabalhei em parcerias de negócio.

FL – Notas que de facto existe diferença entre alguém que é escuteiro e alguém que não é escuteiro e nem sabe o que é o Escutismo?

BM – De uma forma geral diria que não, mas nós (escuteiros) temos formas de estar muito próprias. Não posso dizer que só pelo facto de seres escuteira tens uma certa conduta, ética ou perfil… Não concordo, mas os valores, a essência está lá. Quando és escuteira e tens alguém ao lado que também é, muitas vezes dizemos “Isto é por causa dos escuteiros!” ou “Isto fez-me lembrar os escuteiros!”. Acho que de facto não influencia diretamente o perfil, porque existem outros fatores que influenciam a pessoa que nós somos, mas por vezes se eu estou perante uma situação que me faz lembrar o Escutismo, a outra pessoa ao lado também tem o mesmo feeling. Isso já me aconteceu várias vezes. Contratar não, só mesmo em convivência com pares ou parceiros de negócio.

FL – Facilita muito em termos de trabalho, ou não?

BM- Sim. A linguagem, a adaptação, a tal experiência que nos faz lembrar o Escutismo, acabamos por rir das mesmas piadas!  Em Angola e em Timor conheci escuteiros em posições hierárquicas diferentes mas que depois o mindset é exatamente o mesmo. Por exemplo, em Timor, onde estou atualmente, trabalhei com uma pessoa que foi Primeiro-Ministro e Ministro da Saúde que é escuteiro e atualmente é dirigente. Há momentos e situações acima de tudo, que ele como médico, muito da solidariedade, do apoio ao próximo, de dar e partilhar. Estes valores levaram-no a criar uma associação sem fins lucrativos para promover a saúde pública dos timorenses mais carenciados. Eu sei que ali, para além de ele ter o seu cunho de médico, tem também o cunho do Escutismo. Apesar de não o ter contratado, trabalhámos em projetos, e sei que há ali uma linha que nos une pelo facto de termos sido escuteiros. 

FL – Escolherias um candidato pelo simples facto de ser escuteiro?

BM- Eu sou de Recursos Humanos, por isso tenho toda uma carreira profissional muito longa a olhar para as competências. Porventura, eu iria tentar aprofundar mais as competências não só profissionais mas também provenientes do Escutismo. Acho que a minha profissão me dá essa valência. A minha decisão não poderá ser apenas por isso, porque não estaria a ser correta. Poderia ser algum fator preferencial, mas aí estaria a influenciar o resultado, o que seria muito subjetivo. Mas poderia dizer que tenderia a simpatizar mais com uma pessoa que tivesse frequentado os escuteiros do que outra pessoa que não tivesse frequentado. Lá está, é porque eu acredito que o Escutismo nos prepara para a vida e eu consigo olhar para as crianças e ver a diferença em termos de comportamento, das atitudes e pela forma de estar perante os outros.

Texto: Cláudia Xavier.

Fonte: Lusa; Renascença e Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares

Fotografias: Matilde Gonçalves

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